05 de outubro, 2024

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16° Festival de Curtas Metragens e Direitos Humanos Entretodos

Tuca Munhoz

Fui convidado pelos agora amigos Jorge Grinspun, um dos idealizadores e curadores do Festival, e Anamaria Boschi, produtora, para integrar o corpo de jurados do Festival Entretodos.

Fiquei muito honrado e feliz. Foi, para mim, um grande desafio, pois nunca havia sido jurado de um festival de cinema e tenho pouco conhecimento nessa área.

Assisti a todos os filmes que me competiam analisar. São filmes com, no máximo, 20 minutos de duração. Portanto, não foi uma tarefa muito trabalhosa ou exaustiva. Ao contrário, muito agradável e enriquecedora.

Não fui convidado para analisar os filmes concorrentes a partir de meu lugar de fala, ou de minha área de atuação política: direitos humanos das pessoas com deficiência. Assisti a todos os filmes com o olhar de uma pessoa comum, preocupada com direitos humanos de uma forma geral e sem separações.

Mas foi impossível deixar de observar, de um modo talvez mais carinhoso e atento, os filmes desse festival que passam pelo tema das pessoas com deficiência.

De um total de 26 filmes classificados, quatro passam pelo tema da deficiência, direta ou indiretamente. Achei bastante!

São eles:

Seremos Ouvidas. Brasil/Paraná, 2020, 13 minutos.

Storge. México, 2021, 20 minutos.

Gold Wells. Irã, 2020, 15 minutos.

Ela Mora Logo Ali. Brasil/Rondônia, 2022, 16 minutos.

Um comentário extra para o curta Reservado, Brasil, MG, 2020, 7 minutos.

 

O Seremos Ouvidas, é um documentário sobre a violência contra mulheres surdas. Uma das várias e cruéis dimensões da invisibilidade das pessoas com deficiência. Lembrou-me muito dos projetos dos quais participei, aliás, como único homem: Yes, We Fuck (sexo, sexualidade e direitos reprodutivos das pessoas com deficiência); Vozes Femininas (sobre mulheres com deficiência); e Caliandra (sobre violência contra mulheres com deficiência no período da pandemia). Felizmente, essa questão da violência contra mulheres com deficiência tem sido desvelada muito, muito, lentamente, mas tem sido. Esse pequeno documentário ajuda-nos a conhecer mais essa realidade e, portanto, combatê-la!

Às vezes, sinto que as pessoas surdas são invisibilizadas dentro do próprio movimento de pessoas com deficiência.

Storge, é também um documentário, que conta a história de um pai, já idoso, cuidando de seu filho com uma deficiência intelectual, ou psicossocial, não fica claro. Mas isso não importa. Trata-se de uma relação de cuidado, que todos os pais têm para com seus filhos, mas que, quando ocorre uma situação de deficiência, com dependência, essa relação de cuidado perdura por toda a vida – que é o caso dessa história -, durando, muito frequentemente, até o falecimento dos pais. E é o que acontece nesse filme, quando o pai morre e o filho já não tem mais quem cuide dele. O filme não mostra, mas certamente o destino do rapaz será a institucionalização num abrigo especializado, para toda a vida…

Como o filme é um documentário, a morte do pai cuidador aconteceu, de fato,  enquanto se realizavam as filmagens e cenas do filho, desorientado, ainda procurando pelo pai, em casa, são apresentadas.

Costumo dizer que essa realidade, de pais, mas sobretudo mães, cuidando de pessoas com deficiência até sua morte, é mais uma das realidades de vida das pessoas com deficiência e de suas famílias varridas para baixo do tapete social.

O filme fala sobre cuidado e, coincidentemente, estamos, neste momento, no Brasil, construindo uma Política de Cuidados, imprescindível para que situações semelhantes a essa do filme – com as quais tanto tenho convivido – possam ser contadas de outra maneira.

Gold Wells, ou Poços de Ouro, é uma ficção que se passa num vilarejo no interior do Irã, onde o patriarcado, imagino, seja bem mais pesado do que nas grandes cidades. O filme conta a história de duas irmãs, uma com deficiência e outra sem. A que não tem deficiência é noiva de um casamento arranjado e, com a ajuda e apoio da irmã que tem deficiência, se prepara para o encontro com o noivo e consequente partida para constituir sua própria família. O filme é esteticamente lindo: as atrizes, os cenários, os figurinos. O final é dramático e surpreendente!

Ela Mora Logo Ali, também uma ficção, foi o meu preferido, longe de ser uma unanimidade entre o corpo de jurados. Um dos aspectos pelo qual gostei foi por suas pitadas de humor e situações cômicas. Surge até mesmo um personagem chamado “Dom Caxote”.

Trata-se da história de uma senhora preta, que vende bananas chips no farol, bananas que são feitas por sua irmã, que também cuida do filho da vendedora, um adolescente que tem uma deficiência severa e vive acamado. Ele tem deficiência física e intelectual.

Em sua lida diária e deslocamentos para o trabalho, essa vendedora, ao pegar o ônibus, senta-se ao lado de uma moça que lê um livro. Ela fica muito curiosa e procura, de todo jeito, entabular conversa com a moça que lê Dom Quixote de La Mancha, de Miguel de Cervantes. A leitora vai, então, contando a história para a vendedora que, por sua vez, à noite, ao chegar em casa, repete a história – do seu jeito simples e criativo – para o seu filho. Até que, um dia, a leitora não aparece e a história, para a vendedora, fica inacabada, o que lhe é muito frustrante, pois ela não terá o que contar para seu filho. Ela passa, então, a procurar pela leitora em seu bairro e nunca a encontra. Ela decide comprar o livro, mesmo sendo analfabeta.

Munida de coragem e um forte desejo de continuar contando a história para seu filho, ela vai a uma livraria e compra o livro, que ela pegou na estante conforme a indicação do vendedor. Mas será que ela compra o livro certo?

O final da história é surpreendente e divertido.

Por último, farei um comentário sobre o curta Reservado. Esse filme não tem nada a ver com deficiência e pessoas com deficiência, mas tem a ver com barreiras enfrentadas por pessoas com deficiência e por outros grupos sociais minorizados.

Trata-se da história de uma mulher trans e seu processo de passagem (deixar de ser um homem gay e se tornar uma mulher trans). Aborda sobre qual banheiro deve usar e sua relação de preconceitos, hostilidades e/ou afetos com outros frequentadores desses banheiros, sejam os masculinos, sejam os femininos.

Lembrei-me de uma frase que ouvi da cantora Linn Da Quebrada: “É muito difícil para uma travesti sair de casa”.

E, diferentemente do que se pode pensar logo de pronto, a dificuldade de sair de casa que as pessoas com deficiência têm não são por razões diferentes. Ao contrário: são por razões muito semelhantes e próximas às das mulheres trans. Ambos – mulheres trans e nós, pessoas com deficiência – temos enorme dificuldade para sairmos de casa em razão das barreiras sociais construídas por quem não é como nós. Por quem é uma pessoa “normal”.

E nós, pessoas com deficiência, sobretudo usuários de cadeiras de rodas, temos, também, enorme dificuldade em encontrar banheiros acolhedores e que possamos utilizar sem sermos agredidos pelo capacitismo estrutural.

 

Assista aos filmes aqui comentados, e todos os outros da 16° Mostra, aqui neste link:

https://entretodos.com.br/programacao/mostra-competitiva/

 

 

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