Notas & Informações, O Estado de S.Paulo
A situação repete-se a cada quatro anos, normalmente nos últimos meses do mandato do presidente da República. Quando as atenções da população estão voltadas às eleições majoritárias, a burocracia estatal trabalha silenciosamente para incluir generosos reajustes salariais no Orçamento que será executado pelo futuro governo. A diferença, neste ano, é que o pagamento do bilionário quinhão à elite do funcionalismo público assume ares de absurdo, uma vez que não há espaço suficiente para assegurar sequer a manutenção do piso de R$ 600 para o Auxílio Brasil a partir de janeiro. Como já criticamos neste espaço, o Supremo Tribunal Federal (STF) foi o primeiro a escancarar uma insensibilidade comum à cúpula dos Poderes ao aprovar a autoconcessão de um aumento de 18% nos vencimentos de servidores e juízes de todas as instâncias. Não seria o único. Ao Judiciário, seguiu-se o Ministério Público (MP). O Conselho Nacional do Ministério Público Federal (CNMP) até havia proposto um aumento mais modesto, de 13,5%, mas, imbuído do “princípio da paridade”, o procurador-geral da República, Augusto Aras, decidiu seguir o mesmo porcentual acertado no STF.
Tanto o aumento do Judiciário quanto o do Ministério Público precisam do aval do Congresso para serem incluídos no Orçamento do ano que vem, mas a maioria dos deputados e senadores não costuma se opor a esse movimento. Naturalmente, eles também pretendem aproveitar o ensejo para elevar seus próprios rendimentos. Como revelou o Estadão, o assunto já vem sendo tratado pelos presidentes da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), e do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG). O índice que está em análise no Legislativo é de 9% e proporcionaria aos parlamentares um salário de R$ 36,8 mil.
Como proteção das prerrogativas institucionais do Judiciário, Legislativo e Ministério Público, a Constituição de 1988 deu-lhes autonomia administrativa e financeira. De toda forma, é preciso que, ao exercerem essa autonomia, todos tenham presentes que o Tesouro é um só, com recursos limitados, e que o País tem muitas outras necessidades.
Para além da insensibilidade, o que coroa a avacalhação do processo orçamentário é o fato de que nenhum desses reajustes viola o teto de gastos, dispositivo completamente desmoralizado pelo Executivo. Como mostrou a jornalista Adriana Fernandes em sua coluna no Estadão, foram os dribles no teto, alterado seis vezes pelo Congresso a pedido da União, que criaram o espaço artificial para os aumentos salariais, como a Emenda Constitucional (EC) 114/2021, que institucionalizou o calote dos precatórios da União. Manobras que antes comprometeram a credibilidade do País são as mesmas que hoje avalizam o discurso de pretensa responsabilidade fiscal por parte do comando do Judiciário, do Legislativo e do Ministério Público na defesa do mais puro corporativismo.
Considerando que boa parte dos congressistas deve disputar eleições em outubro, todas as propostas deverão ficar em compasso de espera por alguns meses. Provavelmente serão retomadas e expeditamente debatidas entre novembro e dezembro, quando a maioria da população estiver envolvida com o período de festas de fim de ano e, neste ano em particular, com a Copa do Mundo. É o timing perfeito para deixar a boiada passar e aprovar o Orçamento de 2023, que tem tudo para ser a obra-prima do governo Jair Bolsonaro e atualizar o conceito criado pelo ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva do que seria uma verdadeira herança maldita. Chega a ser irônico, mas sobretudo revelador, que o mesmo Orçamento que garante robustos salários para a elite do funcionalismo público e a cúpula do Judiciário, do Legislativo e do Ministério Público não tenha espaço para pagar um benefício social a milhões de famílias em situação de absoluta vulnerabilidade e insegurança alimentar sem que, para isso, seja preciso violar o teto de gastos e alterar a Constituição pela sétima vez. Talvez não haja melhor imagem do Brasil real, que insiste em nutrir enormes e indecentes desigualdades.
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