O drama se repete de dois em dois meses. A cada atualização do Relatório de Avaliação de Receitas e Despesas Primárias, o governo precisa eleger os Ministérios que terão de pagar o preço pela bagunça que se tornou o Orçamento-Geral da União (OGU). No fim do mês de julho, o mesmo Executivo que acabou de destruir o arcabouço fiscal, legal, eleitoral e constitucional para abrir um rombo no teto de gastos e garantir competitividade à candidatura do presidente Jair Bolsonaro precisará, agora, encontrar espaço para cortar R$ 5 bilhões e corrigir desvios que impliquem o descumprimento do mesmo teto de gastos, além da meta do resultado primário – por sinal, deficitária. Pode parecer brincadeira de mau gosto, mas é assim que funciona a execução orçamentária no governo Jair Bolsonaro.
São dias de disputa ferrenha na Esplanada dos Ministérios, quando cada pasta usa as armas que tem à disposição para se defender da tesourada. Cultura e Ciência, dois dos alvos favoritos do presidente, desta vez estarão parcialmente livres do bloqueio em razão da derrubada de vetos que resgataram a Lei Paulo Gustavo e a proibição ao contingenciamento de recursos do Fundo Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (FNDTC). A mira, portanto, se volta para as despesas discricionárias, cuja execução, ao menos em tese, não é obrigatória e está sujeita à avaliação de oportunidade dos gestores. Representam, basicamente, o custeio da máquina pública e os investimentos.
Há ao menos dois problemas envolvendo as despesas discricionárias. O primeiro é que elas não passam de 5% do Orçamento, e o segundo é que grande parte delas não tem natureza opcional. Elas incluem, por exemplo, o pagamento de contas de energia, telecomunicações e água de edifícios públicos, sujeitas a corte em caso de inadimplência, além de serviços terceirizados de limpeza e segurança. Manutenção de universidades, conservação de rodovias federais e ações da Defesa Civil para prevenção de desastres também se inserem nessa rubrica. São funções inerentes ao Estado e que não podem ser consideradas dispensáveis, ainda mais quando há bilhões reservados para o fundão eleitoral e para as emendas de relator, base do “orçamento secreto”.
Longe de sinalizar algum compromisso com a austeridade fiscal, cada corte no Orçamento é a tradução da incapacidade do governo de fazer o mínimo que dele se espera. O erro começa na própria elaboração do documento, marcada por uma antiga tradição de superestimar receitas e subestimar despesas. A administração de Jair Bolsonaro, no entanto, promoveu o Orçamento a uma verdadeira obra de ficção quando decidiu mudar o período de apuração da inflação para o cálculo do teto de gastos. A manobra oportunista permitiu ao governo aumentar artificialmente o espaço para despesas em R$ 115 bilhões e dar um calote nos precatórios devidos pela União. Mas nem isso foi suficiente. Bastaram seis meses para que houvesse a fabricação do estado de emergência da PEC Kamikaze, que resultou na aprovação de R$ 41,2 bilhões a serem executados fora do teto.
Ficou fácil, para o governo, culpar o teto por essa balbúrdia orçamentária. Criado em 2016, ele foi fruto de uma emenda constitucional que instituiu um novo regime fiscal e simbolizou o resgate da responsabilidade em uma economia devastada por anos de gastança desenfreada durante o governo Dilma Rousseff. O dispositivo, no entanto, nunca foi um fim em si mesmo. Seu funcionamento sempre demandou ajustes adicionais, entre os quais a realização de reformas para reestruturar as despesas obrigatórias, como aposentadorias, salários do funcionalismo público e benefícios sociais. Sem reformas, era óbvio – e inclusive foi previsto à época de sua aprovação – que o teto passaria a estrangular o Orçamento. Ao trabalhar contra as reformas tributária e administrativa, o governo Bolsonaro fez uma escolha pela omissão. Desmoralizar o teto e rasgar o arcabouço fiscal, as leis e a Constituição são consequência dela. A guerra dos cortes no Orçamento é a ponta do iceberg.
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