09 de outubro, 2024

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A Dama das Camélias, por Paulo Delgado

O copresidente do Conselho de Economia, Sociologia e Política da FecomercioSP afirma em artigo que o privilégio é a causa da pane da nossa civilização

“Como ouvidoria de luxo de privilegiados, o Supremo ameaça a ordem democrática”, escreve o sociólogo
(Arte: TUTU)

 

*Por Paulo Delgado

Toninho Drummond, jornalista admirado de quem fui amigo, contou-me certa vez que em 1937 o Cine Glória, da sua Araxá, anunciou a apresentação do filme A Dama das Camélias, dividido em duas partes. Sucesso total, e antes da segunda sessão na mesma semana, a mulher mais cobiçada da cidade confessou, sedutora, ao jovem operador do cinema que seria a pessoa mais feliz do mundo se Marguerite, a heroína, não morresse no final. Seduzido, o operador foi à luta munido de uma tesoura: reeditou o drama para fazer a vontade da insinuante dama. Cortou as cenas finais, substituiu-as por outras e assim Greta Garbo termina aos beijos com Robert Taylor, transformando a tragédia em farsa. Terminada a segunda sessão choveram protestos de leitores da obra original de Alexandre Dumas. O prefeito Antônio Vilas Boas, nomeado depois ministro do STF, estimulou a ira do promotor Christiano Barsante a agir contra o manipulador apaixonado. Chamaram o projecionista. “Semana passada assisti a este mesmo filme em Uberaba. A atriz morre tuberculosa no final. E aqui não?”, interpelou ameaçador, como é costume entre promotores aliados de juízes. “Uai, doutor, fulminou o responsável pela projeção, “ela sarou, todo mundo sabe que o clima de Araxá é muito melhor do que o de Uberaba”.

Não precisamos mexer na fita, caçar vilões com impropérios, manipular sonhos, usar o humor para acostumar o País a cretinos. Não queremos um leão, tigre, águia ou abutre que domine por violência e medo. Precisamos de um cisne que atravesse as águas com grandeza e coragem, a majestade de saber que não fará mau uso do seu poder. Não precisamos de uma geração de vingadores, nem de inimigos arrogantes do mal. Precisamos de uma República tranquila onde o povo não tema seu governante e veja nele sinceridade, concórdia e compromisso.

O País segue joguete da marca de Caim. Não há conflito elevado entre concepções do Direito e sua relação com as questões morais. Há soberba de infelizes juízes que, devendo obséquios a culpados, levam a magistratura a contribuir para a radicalização política aceitando petições atravessadas por poderosos como se a toga fosse traje de bordel sem alvará.

Há um dilaceramento provocado pela política na alma do brasileiro que o fez deixar de acreditar na superioridade do trabalho e na simplicidade do dever. A população não está conseguindo acompanhar o ritmo da vida cada vez mais dura, ostensivamente miserável para o batalhador, suntuosamente privilegiada para o jogador. A riqueza sem lastro ou refinamento desmoraliza a vocação e o esforço para a produtividade. Todo dia quem trabalha é assediado por jogos obscuros promovidos pelo tumulto de personalidades malévolas que ocupam postos muito altos nas principais instituições. Autoridades incapazes de enfrentar a batida do tempo deixam desconsolada e confusa a juventude, que se agride, se mata, se droga, diante deste naufrágio que virou a vida normal entre nós.

A popularidade de um político preso por corrupção beira o obsceno. Manipula o filme da cadeia seguro de que fundou novo conceito do uso do Estado e da Justiça. Deu identidade política ao desprezo pelo plausível e ancorou a farsa no governo como se fosse indignação. Impôs a improvisação e o privilégio como política pública e viu todas as classes se adaptarem sem dificuldade. Criou outra pele para a Nação, sob o açoite do interesse pessoal.

Assim, sem fundamentar a reunificação nacional num plano altamente espiritual em que as instituições públicas renunciem a esse poder viciado que receberam quase como cúmplices, não será possível mudar o timbre de ódio, inveja e bajulação que prevalece. O privilégio é a causa da pane do nosso boletim civilizatório.

Para outubro a confusão ampliada por juízes impunes já apresenta 18 candidatos a presidente com destaque para um falacioso destrutivo, um experiente meio bravo, um eficiente gestor traído, uma solitária de bom espírito, um preso que amedronta o Supremo com seus segredos e usa esse medo para solidificar a versão de que o cálculo político da sua condenação é superior à sua desonestidade como encarcerado. A perda de élan da Justiça diante do réu tornou-se um caso pejorativo. Parem, o Brasil não tem mais força para revidar a esse carrasco sem dó que é a corrupção velada pela Justiça.

São 35 partidos em campanha, incapazes de dar consistência partidária às ideias dos candidatos. Nenhuma preocupação com a articulação parlamentar para produzir a maioria política que estabilize um governo no presidencialismo. Candidato sério não se pode considerar independente da desordem partidária. Quem não estrutura sua base de apoio desde já, para legitimá-la pela urna, terá de fechar negócios depois de eleito, na feira que é a elefantíase do sistema político.

A verdade é um patrimônio da tradição. E faz parte da verdade que onde há reeleição é fundamental a função presidencial no concerto do processo sucessório, ou como candidato, ou como maestro. Especialmente agora que a eleição, garantida pela serenidade do presidente, se tornou a única premissa para que a ordem constitucional continue sendo considerada.

O Supremo, como ouvidoria de luxo de privilegiados, ameaça a ordem democrática ao querer harmonizar moralismo com autointeresse. Nada teme, “sobe aos céus e joga Deus por terra” para seguir na sua atmosfera de fogueteiro cuja função é agravar o desalinho do eixo gravitacional do governo.

De forma engenhosa, Temer construiu um modelo de equilíbrio entre uma agenda reformista na economia e uma postura conservadora na política, e se tornou o mais barato presidente do País em relação aos mecanismos tradicionais de obtenção de apoio parlamentar para fazer reformas. O que incomodou os que não querem mudança e partiram para manipular o andamento do filme sucessório, estimulados pelo fantasma regressivo que intimida maus juízes.

 

*Paulo Delgado é copresidente do Conselho de Economia, Sociologia e Política da FecomercioSP.
Artigo publicado originalmente no jornal O Estado de S.Paulo no dia 11 de julho de 2018.

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