Notas & Informações, O Estado de S.Paulo
O Poder Legislativo criou um enorme problema, de certa forma insolúvel, para o Judiciário: o dever de proteger a democracia nos tempos atuais sem oferecer as ferramentas adequadas para tanto. O que ocorreu nos últimos anos – em concreto, nos últimos meses – foi uma situação realmente desafiadora. A Justiça tinha a missão de defender o Estado Democrático de Direito, mas não dispunha dos meios necessários. O Congresso não definiu, por meio de lei, a regulamentação das redes sociais nem estipulou o tratamento jurídico a ser dado à desinformação.
Assim, o Judiciário só tinha à disposição instrumentos e procedimentos antigos, pensados para contextos muito diferentes. Uma resistência à altura dos ataques e ameaças antidemocráticas necessariamente provocaria desequilíbrios e despertaria críticas. Não havia solução perfeita: ou a Justiça iria ser acusada de omissão ou de ativismo. Diante dessa disjuntiva, o Supremo Tribunal Federal (STF) e o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) entenderam que a prioridade era preservar o regime democrático. Todo o restante era secundário, até porque, sem democracia, todas as outras liberdades e garantias também estariam ameaçadas.
Decretado inúmeras vezes pelo STF e pelo TSE, o bloqueio de perfis em redes sociais é uma das medidas dessa atuação protetiva da Justiça com especial potencial de ferir liberdades e garantias fundamentais. Para muitos, essa atuação do Judiciário configuraria inequívoca censura. Ela não apenas puniria supostos abusos pretéritos, como impediria futuras manifestações de opinião. Segundo a Constituição, “é livre a manifestação do pensamento” e “é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença”.
Cabe advertir, em primeiro lugar, a plena legitimidade de a Justiça determinar o bloqueio de perfis em redes sociais. A medida não é por si só abusiva. O direito de se expressar livremente não significa direito absoluto e irresponsável de ter um perfil numa rede social. Não há direito de delinquir. Não há direito de agredir. Existe, por exemplo, liberdade constitucional de associação, mas não existe liberdade de associação para o crime. São coisas diversas, e compete à Justiça fazer a devida distinção entre elas.
Deve-se reconhecer, ao mesmo tempo, que a atuação da Justiça nessa seara tem de ser especialmente cuidadosa. O Judiciário deve interferir o mínimo possível – apenas e tão somente onde for realmente necessário – e de forma muito fundamentada – caso a caso, sem soluções de baciada. Um tanto óbvias, essas duas condições se chocavam com a frequência, a intensidade e o ineditismo dos ataques e ameaças à democracia. Como definir de antemão o que é o estritamente imprescindível? Como responder a uma contínua avalanche de desinformação? Não apenas não havia critérios legais, como não existiam parâmetros jurisprudenciais previamente estabelecidos. STF e TSE estavam, de fato, em uma situação muito particular.
Reconhecer a excepcionalidade dessas circunstâncias, como também a omissão do Congresso no tratamento jurídico relativo à desinformação, é essencial para entender o contexto real no qual os inúmeros bloqueios de perfis em redes sociais foram decretados pelo STF e pelo TSE. A Justiça atua no caso concreto, e não em situações hipotéticas de debates acadêmicos. Eventual omissão poderia gerar graves danos aos direitos e garantias de todos.
De toda forma, ter presente o contexto dessas decisões judiciais não significa aplaudi-las todas, e muito menos anuir com sua permanência no tempo. É mais que hora de o Judiciário revisar essas medidas, mantendo apenas aquelas que, de forma inequívoca e fundamentada, sejam estritamente necessárias nas circunstâncias atuais. Nesse trabalho, é fundamental que os indícios de crimes sejam apurados e, nas hipóteses legais, denunciados.
Entre outros pontos, o Estado Democrático de Direito significa compromisso inegociável com o devido processo legal. Liberdade e cumprimento da lei não se opõem.
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