Notas & Informações, O Estado de S.Paulo
O descalabro fiscal que o governo Jair Bolsonaro deixará como herança para quem vencer as eleições pode atingir inacreditáveis R$ 430 bilhões em 2023, o equivalente a 4,3% do Produto Interno Bruto (PIB). A estimativa foi calculada pelos economistas Braulio Borges e Manoel Pires e consta da edição de agosto do Boletim Macro do Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getulio Vargas (FGV Ibre). O número inclui despesas não cobertas no Orçamento e que colocam em dúvida o cumprimento do teto de gastos; propostas que reduzem a arrecadação e afetam o superávit primário; eventos com impacto financeiro negativo e que pioram o déficit nominal; e incertezas com o potencial de produzir impactos relevantes caso sejam materializadas. A manutenção do piso do Auxílio Brasil em R$ 600, o reajuste dos salários do funcionalismo público e a revisão das despesas discricionárias devem ultrapassar R$ 120 bilhões, valor para o qual não há cobertura e que exigirá uma sétima mudança no teto e na Constituição para que seja viabilizado. Tudo indica que o enterro do atual arcabouço fiscal é uma questão de tempo, independentemente do presidente que vier a ser eleito.
Nesse contexto, tem ganhado força a tese segundo a qual será necessário permitir uma licença temporária para aumentar o gasto público no ano que vem enquanto a equipe do futuro presidente elabora um novo regime fiscal, um entendimento que tem reverberado mesmo entre economistas que não costumam concordar em praticamente nada. Se há divergências a respeito da âncora a ser adotada, não restam dúvidas de que o teto deixou de servir como uma referência de austeridade para as contas nacionais. Eis um legado positivo – e por isso mesmo inesperado – gerado pelo atual governo: seu ímpeto destrutivo extrapolou todos os limites, a ponto de unir o País na busca de consensos para tirá-lo do buraco.
Como mostrou o Estadão, representantes de bancos e de fundos de investimento estão dispostos a aceitar uma ampliação do gasto público de até R$ 70 bilhões em 2023. O “Grupo dos Seis”, formado pelos economistas Bernard Appy, Pérsio Arida, Francisco Gaetani e Marcelo Medeiros, pelo advogado Carlos Ari Sundfeld e pelo cientista político Sérgio Fausto, sugeriu algo semelhante, mas limitado a R$ 100 bilhões, o equivalente a cerca de 1% do PIB. Técnicos do Tesouro Nacional propuseram a adoção de um regime de metas para a dívida bruta, a exemplo do sistema de bandas inflacionárias que orienta o trabalho do Comitê de Política Monetária (Copom) do Banco Central (BC). Já o ex-ministro da Fazenda Nelson Barbosa defendeu a definição de uma meta para o crescimento real do gasto primário – em vez de fixar um objetivo para o saldo entre receitas e despesas, excluídos os juros da dívida. Independentemente da âncora que vier a ser escolhida, fato é que ela precisa sinalizar um compromisso verdadeiro com a credibilidade fiscal no médio e longo prazos. O boletim da FGV Ibre faz um alerta: “Se esse for o caminho a ser seguido, é importante que se chegue a um bom acordo político porque o cenário de juros e inflação ainda requer muito cuidado”.
Um debate sério sobre a âncora fiscal merece ser tratado com prioridade na campanha eleitoral. Adotar políticas públicas que proporcionem dignidade e uma porta de saída a milhões de famílias vulneráveis e que garantam qualidade para a educação e a saúde passa necessariamente pelo resgate da responsabilidade fiscal, sem a qual o financiamento dessas ações se torna impossível. Um aspecto a ser considerado nas discussões é a construção de um arcabouço perene, que possa ser seguido pelo governo eleito em outubro e pelos que vierem a suceder-lhe no futuro, e que simbolize o abandono de manobras contábeis que não enganam ninguém. Superávits primários pontuais, gerados a partir de receitas extraordinárias, de calote nos precatórios e do efeito da inflação na arrecadação, não têm nenhum impacto na redução dos juros. Produzir uma deflação temporária e concentrada em preços administrados não convence nem o eleitor nem o mercado.
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