No ensaio A Torre de Babel, o filósofo político Michael Oakeshott descreve assim a conhecida história bíblica: “Eram dadas ordens que não eram obedecidas por não serem entendidas; temperamentos tornaram-se animosos; a exasperação espalhou-se; e a frustração atingiu tal dimensão que as pessoas de Babel não mais eram capazes de tolerar a presença umas das outras. Assim, não foi por meio de um dilúvio, mas por uma inundação de palavras sem sentido que o império de Nemrod foi destruído. (…) E o nome de Babel, que originalmente significara Cidade da Liberdade, adquiriu seu significado histórico: Cidade da Confusão”.
A descrição acima pode ser aplicada aos dias de hoje. Existe no Brasil uma profunda crise cívica, que, com sua Babel de informações distorcidas, gera frustração e exasperação. Há um déficit de confiança nas relações sociais: o outro – quem pensa diferente – deixou de ser merecedor da presunção de boa-fé; não se concede uma saída honrosa para a voz discordante. Nota-se também uma carência de ponderação, de equilíbrio: todas as afirmações são taxativas; não há tons intermediários. E há ainda uma ausência de afetividade, de sensibilidade: não basta discordar do adversário, é preciso torná-lo desprezível aos olhos de todos.
A população negou um novo mandato a Jair Bolsonaro, desvelando um horizonte mínimo para a reconstrução da racionalidade pública. Mas sua derrota política não soluciona, por si só, nossa crise cívica, que, alimentada pelo bolsonarismo, é anterior a ele. Não nos enganemos. É necessário requalificar nossas relações sociais, para que se possa reconstruir, pouco a pouco, um ethos de paz e de civilidade.
Destaco três aspectos que me parecem decisivos na reconstrução de um tecido social plural – respeitar o valor da verdade, o valor do outro e os limites da convivência –, consciente de que crises cívicas, por sua própria natureza, não se resolvem exigindo que os outros se comportem de determinada maneira. Elas são solucionadas pela difusão de uma nova confiança, de um novo equilíbrio, de uma nova sensibilidade. Os pontos a seguir não são, portanto, regras ou ordens para os outros. São caminhos possíveis, aptos a serem trilhados apenas livremente, sem nenhuma coação.
A convivência demanda respeito aos fatos. Nem tudo é opinião, nem todas as opiniões têm o mesmo valor. A liberdade de expressão não significa igualar todas as expressões. Uma mentira, ainda que seja dita um milhão de vezes, ainda que seja dita por alguém que admiramos, continua sendo mentira.
A ignorância produz desassossego. Respeitar o valor da verdade é incentivar o estudo, o diálogo, a leitura, o jornalismo. É ampliar o contato com outras perspectivas. É não repassar informação sem contexto. É não usar dados duvidosos para pavimentar nossa narrativa. É ajoelhar-se perante a complexidade do mundo. É não tornar absolutas nossas ideias. É não levar muito a sério nossa própria retórica. As redes sociais fazem com que nos inflamemos com o eco do nosso discurso.
Em segundo lugar, conviver é respeitar o outro, mesmo que ele use outra cor de camisa, mesmo que ele tenha outra cor de pele. Restabelecer o valor do outro é não normalizar a ameaça ou a agressão, física ou psicológica, como reação à discordância. É não chamar de bandido o ministro do STF simplesmente porque ele deu uma decisão contrária às minhas convicções. É não presumir má-fé. É não responder com o fígado. É olhar no olho. É não lacrar. É não aplicar contra o adversário as táticas que não queremos que sejam usadas com nossos amigos.
Por último, mas não menos importante, a convivência pede limites de interferência sobre a vida alheia. A laicidade do poder público – a separação entre Estado e religião – não foi resultado de reflexões abstratas. Ela nasceu de uma necessidade primária: a paz social. O novo standard de pluralismo gerado pela reforma protestante trouxe uma consequência política muito concreta: não há paz possível se o governante quer impor suas pretensões de verdade, de bem ou de virtude. No entanto, parece que nos esquecemos disso. O comportamento alheio nos escandaliza cada vez mais e queremos, indo muito além dos limites da lei num Estado Democrático de Direito, ditar como os outros devem viver, votar, amar ou mesmo sentir.
O integralismo produz conflitos sociais. A vitória numa eleição – seja no Executivo, seja no Legislativo – não dá direito de impor aos outros nossa concepção de vida, nossa ideia de moral, nossa leitura da Constituição. Quem diz estar de luto por discordar de quem será o próximo governante não entendeu nada do que é o âmbito de poder estatal. Num Estado totalitário, talvez possa fazer sentido esse sentimento. Num regime democrático, é uma resposta rigorosamente desproporcional.
O País está cansado. É tempo de respeitar o outro, de cuidar das palavras, de proteger a liberdade de todos e de cada um. É hora de serenidade. O fato de que não possamos submeter o governo e o mundo às nossas ideias não nos dá direito à histeria e, muito menos, à agressão.
*
ADVOGADO
Comentários