05 de novembro, 2024

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A manobra ilusionista do governo só contribui para agravar a tragédia que se abate sobre o país

Por Helio Gurovitz

Diretor de redação da revista Época por 9 anos, tem um olhar único sobre o noticiário. Vai ajudar você a entender melhor o Brasil e o mundo. Sem provincianismo

Não é novidade que ditaduras não gostam da verdade. Em nenhum momento isso fica tão claro quanto nas crises sanitárias. Da epidemia de meningite no Brasil dos anos 1970 à tentativa da China para esconder o novo coronavírus no início (como já fizera com a Sars em 2003), a história está repleta de exemplos de censura a informações sobre a saúde pública, quando incomodam tiranos no poder.

Mesmo nas democracias, porém, a relação dos governos com as emergências sanitárias é ambígua. Por isso também não surpreende que o governo brasileiro tenha ensaiado uma manobra de ilusionismo para justificar a omissão de dados sobre a pandemia, na tentativa de minimizar a tragédia que se abate sobre o país. Só que, ao tentar evitar o pânico, acaba por amplificá-lo.

O melhor exemplo histórico desse erro – na época, resultado da inépcia de “generais cuja estupidez só era superada pela própria brutalidade”, nas palavras do historiador John Barry – ocorreu em 1918, quando a Primeira Guerra serviu de pretexto para o controle das informações sobre a gripe. Foi a censura nas democracias em guerra que levou a pandemia a ficar conhecida como Gripe Espanhola, pois só da Espanha vinham notícias da moléstia.

“O país ficou neutro durante a guerra. Isso significava que o governo não censurava a imprensa e, ao contrário dos jornais franceses, alemães e britânicos – que não imprimiam nada negativo, nada que pudesse abalar o moral –, os jornais espanhóis estavam repletos de relatos da doença”, escreve Barry em A grande gripe, obra de referência sobre a pandemia.

Nos Estados Unidos, o presidente Woodrow Wilson estabeleceu o Comitê de Informação Pública (CPI), sob inspiração de um dos pais da propaganda, Walter Lippmann. A sociedade, escreveu Lippmann a Wilson, era “grande e complexa demais” para ser compreendida por cidadãos que considerava “bárbaros ou crianças mentais”. O CPI mantinha vigilância estrita sobre tudo o que era publicado. Usava força e meios arbitrários para esconder a tragédia.

O resultado da falta de informação foi um morticínio sem paralelo. A gripe matou bem mais que a guerra. Em Filadélfia, nenhum médico pôde alertar para os riscos de uma passeata, promovida para incentivar a venda de bônus da guerra. Na véspera, os hospitais já estavam lotados com casos de gripe. Dois dias depois da passeata, realizada com apoio do prefeito, o quadro se tornou devastador. Filadélfia registrou o maior índice de mortalidade nos Estados Unidos: foram 20 mil mortos, ou 407 para cada 100 mil habitantes.

“Os problemas apresentados por uma pandemia são, obviamente, imensos”, diz Barry. “Mas o maior problema está na relação entre os governos e a verdade.” Por mais terrível que a doença seja, o pânico vem não da divulgação das informações, mas da tentativa de escondê-las.

Manipular dados ou adotar um discurso que minimiza os fatos – aquilo que consultores de comunicação chamam de “gestão de riscos” – acaba tendo o efeito contrário. “Se há uma única lição dominante de 1918, é que os governos devem contar a verdade numa crise”, diz Barry. “A comunicação de riscos implica administrar a verdade. A verdade não se administra. A verdade se conta.”

A diferença, no Brasil de hoje, é que manipular os números ficou bem mais difícil. Nem bem o Ministério da Saúde ensaiou sua manobra, surgiram várias iniciativas para suprir a sociedade com as informações completas, a partir dos boletins das secretarias estaduais, a principal delas promovida em conjunto pelos principais veículos da imprensa brasileira (o G1 já mantém esses dados atualizados). Não estamos mais nos anos 1970, quando mimeógrafos eram usados para rodar os samizdats na União Soviética ou panfletos clandestinos no Brasil. A internet tornou qualquer tentativa de controle dos dados, além de ridícula, também inócua.

O mais provável é que o objetivo da manobra tenha sido outro: desviar o foco do escândalo que já são os próprios números oficiais. Ao insinuar que o total de mortes precisava ser revisado para baixo, o agora ex-secretário Carlos Wizard tentava evitar a discussão sobre a subnotificação. Nenhum epidemiologista que se preze tem dúvida de que os totais oficiais estão subestimados.

No Brasil, os mortos oficiais não somam nem metade do impacto real da pandemia (leia mais aqui). A questão central hoje, por paradoxal que possa parecer, não é saber exatamente quantos morreram infectados pelo novo coronavírus (embora isso também seja importante). As vítimas, como ensina a história da Gripe Espanhola, vão muito além das que morrem apenas da doença. Para planejar o combate à pandemia, é preciso ter acesso a dados confiáveis de mortalidade por todas as causas em todo o país. Era disso que o governo deveria cuidar, em vez de tentar desviar a atenção do público com mais uma manobra de prestidigitação.

Foto: Protesto contra o governo Jair Bolsonaro, na região de Pinheiros, no largo da Batata, em São Paulo (SP), neste domingo (7/6) — Foto: Roberto Sungi/Futura Press/Estadão Conteúdo

 

 

 

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