Por Thamíris Evaristo Molitor*
Na última segunda-feira, dia 11 de novembro, foi publicada a Medida Provisória nº 905. Alardeada pelo governo Bolsonaro como estímulo à criação de empregos, a medida, na verdade, é uma nova reforma trabalhista que, além de diminuir as garantias trabalhistas para os jovens que estão em busca do primeiro emprego, altera vários outros dispositivos das normas de direito do trabalho.
A nova figura, denominada na MP por “contrato de trabalho verde e amarelo”, seria uma modalidade de contratação por prazo determinado (renovável até o prazo máximo de 24 meses e podendo ser rescindido antecipadamente sem multa), destinada “exclusivamente para novos postos de trabalho” (artigo 2º) para jovens entre 18 e 29 anos. Não há nenhum texto expresso na norma que evidencie como seria feita a fiscalização nas empresas para que não se permita, de fato, que outros(as) empregados(as) sejam dispensados(as) e substituídos(as) por jovens contratados(as) a partir dessa modalidade mais precária. Pelo contrário, o artigo 2º, §4º, prevê que o(a) trabalhador(a) que havia sido contratado(a) sob outras formas de contrato de trabalho (que exploraremos no parágrafo abaixo) poderá ser recontratado(a) pelo mesmo empregador após um prazo de 180 dias. É possível que seja um novo posto de trabalho, mas ainda assim, acredito que tal disposição pode gerar interpretação em sentido errôneo.
Também é previsto que para fins de caracterização do primeiro emprego não serão considerados vínculos anteriores sob a forma de menor aprendiz, contrato de experiência, trabalho intermitente e trabalho avulso. Em minha percepção, não há uma racionalidade jurídica na escolha dessas figuras para não serem consideradas como vínculos anteriores, entretanto, destaco o caso do contrato de trabalho intermitente. Modalidade que surgiu no sistema justrabalhista brasileiro na reforma de 2017, conhecido internacionalmente como contrato “zero hora”, trata-se de um contrato de trabalho que não prevê jornada mínima para o(a) trabalhador(a), que pode ser convocado(a) pelo empregador a prestar serviços quando houver necessidade (artigos 443, §3º e 452-A da CLT). Tal contrato, apesar de ser considerado precário por muitos juristas, foi incorporado nas normas brasileiras de direito de trabalho pelos próprios representantes do capital que agora excluem essa modalidade como possibilidade de primeiro emprego, admitindo sua impossibilidade de incluir trabalhadores(as) no mercado formal de trabalho (visando a aumentar o número de jovens que poderão se submeter a esse, também precário, contrato verde e amarelo).
Limita-se a contratação de trabalhadores(as) nessa modalidade a 20% do número dos(as) funcionários(as), a menos que a empresa tenha menos de 10 funcionários(as). Nesse caso, que é o caso da maioria das empresas constituídas no Brasil, pode-se contratar dois empregados(as) nessa modalidade. Ou seja, o empregador pode ter apenas um(a) empregado(a) “comum” e contratar mais dois(duas) do tipo precário.
O salário-base mensal dos(as) trabalhadores(as) contratados(as) por esse regime deve ser de, no máximo, um salário-mínimo e meio. Essa informação é importante para pensarmos a questão das demais verbas trabalhistas incidentes sobre o salário: o décimo terceiro salário e as férias devem ser antecipadas e pagas ao final de cada mês (ou período acordado); e a indenização sobre o montante do FGTS poderá ser adiantada por acordo e será sempre paga pela metade (20%), além da alíquota para o depósito mensal ser diminuída de 8% para 2%.
O adiantamento do pagamento das férias e décimo terceiro pode parecer uma vantagem à primeira vista, mas considerando todo o texto da medida provisória, fica preocupante o fato de que esses(as) jovens quando tiverem seus contratos encerrados não terão mais nenhum direito a receber. Além disso, se esses(as) jovens não tiverem acesso à informação, poderão não entender que o salário que estão recebendo mensalmente já está composto por todas essas verbas trabalhistas. Não é algo trivial no Brasil ter acesso às informações jurídicas, ainda mais no caso de uma medida provisória.
No caso do depósito do FGTS temos alterações ainda mais graves. Sendo o salário desses(as) trabalhadores(as) de no máximo R$ 1497,00 (um salário-mínimo e meio atualmente), e o depósito para o fundo caindo para ¼ do que é normalmente feito (2%), ao final, de, por exemplo, 12 meses de contrato com o salário máximo, esse(a) empregado(a) teria apenas R$ 359,28 (sem considerar os juros) depositado em sua conta vinculada do FGTS (isso se o empregador não resolvesse diluir esse pagamento ao longo dos meses). Um(a) trabalhador(a) não contratado(a) por esse regime teria depositado aproximadamente R$ 1497,00 (a ideia do FGTS era exatamente que o(a) trabalhador(a) tivesse um salário inteiro ao final de cada ano de trabalho depositado nessa conta). Caso seja dispensado(a), o(a) trabalhador(a) “verde e amarelo” tem direito à multa de apenas 20%, ou seja, receberia, no total, R$ 431,14 (saque do saldo mais multa) por sua dispensa imotivada, enquanto o trabalhador(a) “comum” receberia R$ 2.095,80.
Importante relembrar rapidamente a história do FGTS, que foi implementado no Brasil em 1966 para substituir a “estabilidade decenal” (o(a) trabalhador(a) que permanecesse por dez anos na mesma empresa adquiria estabilidade no emprego), inicialmente opcional e após 1988 o fundo passa a ser o único regime. Foi vendido à época como vantagem para que os(as) trabalhadores(as) tivessem uma poupança quando dispensados(as) para não passar necessidade até conseguir outro emprego, entretanto, percebe-se como década a década a classe exploradora vai aumentando a extração de valor da força de trabalho, retirando, sempre que tem oportunidade, um pedacinho da massa salarial dos(as) trabalhadores(as).
Na mesma toada de verbas decorrentes do salário, a MP isenta os empregadores do pagamento da cota patronal do INSS (não isentando o trabalhador, claro), da contribuição ao sistema S e do pagamento do salário educação. Após toda a mobilização governamental com relação ao suposto rombo da previdência social e a necessidade urgente de reforma da previdência, que também foi promulgada nessa semana, como que o governo simplesmente renuncia a essa contribuição? Isso tudo na mesma medida provisória que prevê que o seguro-desemprego passará a ter desconto de contribuição previdenciária! Apenas os(as) trabalhadores(as) que pagam pela crise e pelo suposto rombo. Foi alardeado que o fato do tempo do seguro-desemprego passar a contar para fins de aposentadoria compensaria esse pagamento, mas, após a reforma da previdência, que trabalhador(a) irá se aposentar?
Outra questão curiosa, é que essa MP inverte a preferência dos grandes empregadores, estabelecendo que o “legislado prevalece sobre o negociado” (artigo 4º, parágrafo único). A grande briga do capital para a implementação da reforma trabalhista de 2017 era a defesa da “autonomia privada coletiva” e o fato de que os(as) trabalhadores(as) deveriam ser livres para negociar com os seus patrões. Ocorre que essa medida provisória precariza tanto o trabalho dos mais jovens que até mesmo as convenções e acordos coletivos pós reforma teriam garantias melhores e, nesse sentido, a partir desse dispositivo, fica escancarado que a defesa da negociação naquele outro contexto não era, de fato, um interesse em maior diálogo, mas sim, a busca pela forma que aumente mais os lucros dos empregadores, fazendo com que os(as) trabalhadores(as) fiquem cada vez mais empobrecidos(as) “pagando” pela crise de acumulação do capitalismo.
Nesse espaço não será possível fazer uma análise completa e profunda do texto dessa medida provisória, mas ficam indicados alguns dos problemas da nova modalidade de contratação estabelecida. Além da contratação verde e amarela, diversos dispositivos da legislação justrabalhista foram alterados e merecem nossa atenção. Apenas a título de exemplo: volta a autorização geral de trabalho aos domingos e feriados (já rejeitado no Congresso na MP da Liberdade Econômica, e sua volta na mesma legislatura é entendida como inconstitucional); e a disposição sobre o seguro-desemprego é geral, e não só para a nova contratação.
Assim, é grave a situação a que estão submetidos os trabalhadores e trabalhadoras no Brasil. É cínico o uso da uberização do trabalho, da informalidade e do número alto de desemprego para justificar que a legislação trabalhista abra as portas para uma nova reforma trabalhista, para precarização da classe trabalhadora. É necessário agir para que os(as) trabalhadores(as) saíam da pobreza: piorar a legislação trabalhista enquanto os grandes empregadores do país continuam com margens de lucro altíssimas não nos parece o caminho.
A esquerda precisa se reorganizar para resistir aos impressionantes avanços feitos pelo governo Bolsonaro contra a classe trabalhadora. Reforma da previdência e duas reformas trabalhistas em um ano sem ao menos uma greve geral é grave: é necessário organizar as esquerdas para lutar contra o empobrecimento cada vez mais agudo da classe trabalhadora. A resistência contra a tentativa de “flexibilização” da legalidade estrita do direito penal também é muito importante para defesa dos mais pobres, mas enquanto grande parte da esquerda comemorava que Lula estava livre, o governo brasileiro continuou estrategicamente negociando o ataque à classe trabalhadora.
*Thamíris Evaristo Molitor Doutoranda em direito do trabalho e mestra em direitos humanos pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Integrante do Grupo de Pesquisa Direitos Humanos, Centralidade do Trabalho e Marxismo (FADUSP).
Imagem: Agência Brasil – Arte: Gabriel Pedroza / Justificando
https://www.justificando.com/2019/11/19/a-nova-reforma-trabalhista/
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