Por Otavio Torres Calvet
Escrevi há duas semanas artigo sobre a necessidade da instituição a que pertenço, a Justiça do Trabalho, pedir perdão à sociedade pelo que acabou produzindo como resultado de sua atividade.
Acho interessante como a reflexão que fiz, sem apontar nenhum culpado específico, provocou tantas reações com as acusações de sempre, fruto dessa nova modalidade que vivemos onde o caminho para refutar um texto é desconstruir o autor, não as ideias ali expostas.
O fato é que pouco importa para minha biografia as palavras injuriosas, a bem da verdade são elas que motivam a continuar, pois testemunhas do alcance da crítica provocadora de alguma indignação, sinal que ainda não estamos mortos.
Continuo, portanto, e relembrando o mestre Ariano Suassuna, com essa missão da qual me autoatribuí, uma espécie de arauto que pretende salvar a Justiça do Trabalho de si mesma através da exposição de sua produção coletiva que resulta em consequências, a meu ver, nefastas para o jurisdicionado.
Impossível, assim, não lembrar dos “causos” que Suassuna utilizava para expor brilhantemente suas ideias, principalmente porque me identifico não apenas com a simplicidade, mas com o conteúdo das histórias, mormente as que envolvem os “doidos”, numa época em que o falar natural e regional não provocava cancelamentos.
Nesse espírito, vale explicar o “drobe tudo!!!” do título. Minha família por parte da esposa reside no Nordeste, onde todos os anos passamos o período de recesso, o famoso veraneio. Como um recorte temporal, lá encontramos tipos humanos que demonstram a riqueza da diversidade brasileira e nostalgicamente relembram a pureza da infância.
Um dos seguranças da região, Luiz, natural de Coqueiro, há muitos anos trabalhou em restaurante onde conheceu outro Luiz, de São Miguel do Gostoso. Para diferenciar, um se tornou Luiz Coqueiro e, o outro, Luiz Gostoso, apelido que rapidamente evoluiu para Luiz Gostosa, fruto da gaiatice usual dos amigos mais próximos.
“Gostosa”, como eu já o conheci, possui atividades comerciais na cidade, entre elas um trailer de sanduíches bastante conhecido, parada obrigatória para as crianças (que são muitas!). Certo dia, palavras do próprio, um cliente estava reclamando de tudo, que a comida era pouca, que o recheio não era suficiente, que a bebida acabara e por aí vai.
No alto de sua sapiência intuitiva, com o linguajar típico da região, Gostosa, para resolver o problema do cliente, não titubeou e deu a ordem fatal: “drobe tudo!!!”.
O jargão virou parte da cultura familiar, sendo utilizado sempre que desejamos exprimir algo semelhante. Alguém não está satisfeito com o almoço? Drobe tudo!!! Estão reclamando que a bebida acabou? Drobe tudo!!! Estamos ficando sem aperitivos para as visitas? Drobe tudo!!!
E depois do artigo do “perdão” da última quinzena, não pude resistir a pensar que a combalida Justiça do Trabalho está fazendo seu “drobe tudo!!!”, mas com resultados que não promoverão nem risadas nem satisfação do cliente.
Talvez a família trabalhista não compreenda o descompasso existente entre o que produzimos coletivamente e o impacto para terceiros. Família aqui, para deixar claro, engloba todos os atores da nossa área, não apenas os magistrados (ampliando o leque do ódio).
Tenho o privilégio de exercitar, para além da magistratura, o magistério, com mais de duas décadas rodando o país em diversos eventos e plateias, muitas delas compostas por empresários, que geralmente desabafam acerca do tratamento recebido quando reclamados perante a Justiça.
Não reclamam, percebam, pelo fato de existir uma Justiça do Trabalho, nem de ocorrer eventual condenação decorrente de ação trabalhista. A reclamação vem sempre do exagero. Parafraseando vulgar expressão aqui da minha terra, a cidade maravilhosa, o famoso “bate, mas não esculacha”.
E justamente no período em que todos percebem um caminhar do Supremo Tribunal Federal completamente diverso da Justiça do Trabalho, em decisões que abalam sua estrutura e forma de pensar tradicionais, que eu chamo de “obsessão fraudiana” (não de Freud, mas de fraude), onde qualquer coisa diferente dos direitos trabalhistas da CLT é fraude, a Justiça do Trabalho produz o tal “drobe tudo!!!”.
A primeira notícia que me impactou foi a da anulação de uma norma coletiva, em caso concreto, acerca de gozo de férias de marítimos. Em suma, a norma coletiva autoriza que as férias coincidam com períodos de folga dentro do regime especial em que trabalham os embarcados.
Respeitando o entendimento exposto na decisão judicial, mas com ela não concordando, o que espanta é a utilização de uma lógica de pensar o Direito do Trabalho que ignora completamente as mudanças trazidas pela legislação, a reforma trabalhista de 2017, e pelo próprio STF que, no Tema 1.046, fixou a seguinte tese vinculante: “São constitucionais os acordos e as convenções coletivos que, ao considerarem a adequação setorial negociada, pactuam limitações ou afastamentos de direitos trabalhistas, independentemente da explicitação especificada de vantagens compensatórias, desde que respeitados os direitos absolutamente indisponíveis”.
Assim, não se pode mais discutir a validade de norma coletiva quanto ao conteúdo, salvo para verificar se a negociação afrontou “direitos absolutamente indisponíveis”. E para a decisão acima mencionada, sim, houve não apenas uma negociação que gerou renúncia a direito, como afronta ao direito às férias, que seria indisponível.
Ocorre que o direito às férias, como ensina qualquer manual de Direito do Trabalho, encontra-se dentro do instituto da “duração do trabalho” e a lei, expressamente, autoriza a negociação coletiva sobre tal tema, como se percebe do parágrafo único do artigo 611-B da CLT, inserido pela Lei 13.467/2017 (reforma trabalhista): “Regras sobre duração do trabalho e intervalos não são consideradas como normas de saúde, higiene e segurança do trabalho para os fins do disposto neste artigo”.
E o que isso significa? Simples, pode haver negociação coletiva sobre férias e folgas. A lei autoriza, mas e daí? Drobe tudo!!!
Na sequência, igualmente perplexo fiquei com mais um julgado reconhecendo que a reforma trabalhista de 2017, no que concerne aos direitos dos trabalhadores, simplesmente não se aplica a quem já estava contratado à época.
Isso mesmo, para essa linha de pensamento da jurisprudência, há hoje no Brasil duas castas diferentes de empregados, os de antes e os de depois da reforma. Os primeiros mantendo exatamente a mesma CLT sem os “retrocessos” da lei de 2017.
Novamente respeitando os entendimentos de cada um, como gostariam que respeitassem os meus, este tipo de decisão não apenas ignora a realidade como torce o próprio Direito, impedindo a vigência imediata de uma lei de ordem pública a parte dos cidadãos, supostamente protegidos por seus contratos.
Faltou apenas estabelecer que tais contratos não podem acabar, pois óbvio que o empresário poderá optar por mudar o quadro de empregados para poder ter acesso à aplicação da lei que estabelece novas regras para os direitos trabalhistas.
Fico imaginando o empresário que, há quase seis anos, aplica a nova lei — como em regra deve fazer o jurisdicionado —, sendo agora surpreendido por uma tese jurídica que geralmente necessita de várias laudas só para uma ementa de acórdão, gerando um passivo injusto, pouco importando quem está certo ou errado no “entendimento”. Alguém vai pagar a conta: dobre tudo!!!!
Enquanto isso, também nesta última quinzena, segue em rumo o desmonte da Justiça do Trabalho, com mais uma decisão em reclamação constitucional sobre vínculos de trabalho diversos do de emprego, agora sobre corretores de imóveis e as construtoras, bem como talvez o sinal mais significativo do nosso fim: a nova Lei Geral do Esporte (Lei 14.597/2023).
Para quem não percebeu, o artigo 82 da citada lei autoriza a contratação de atletas sem vínculo de emprego, permitindo que seja feita uma escolha quanto à natureza do vínculo: de trabalho ou cível.
Conhecedores que somos do mercado de trabalho, não temos dúvidas de que em breve a maioria dos atletas realizarão seus contratos de natureza civil, pois quem puder optar por fugir dos trabalhistas não pensará duas vezes.
E provavelmente este modelo dos atletas será seguido, em breve, em novas legislações das novas formas de trabalhar. Uma verdadeira fuga das relações de trabalho do seu habitat natural com uma lógica simples: se a Justiça do Trabalho entende como fraude o afastamento de direitos, melhor permitir que a escolha seja prévia, quanto ao próprio vínculo. Assim, a “obsessão fraudiana” fica neutralizada.
Por mais que não queiramos, orgulhosos, pedir perdão, continuar no mesmo caminho de não se curvar ao “capital”, odiando a “burguesia”, seguindo o comando do “barbudo alemão”, fazendo resistência ao próprio STF, desqualificando suas decisões trabalhistas por não condizerem com a nossa vontade, apenas acelerará o rumo que talvez seja inevitável.
Em breve o “drobe tudo!!!” será no nosso fim. Orgulhoso fim.
Otavio Torres Calvet é juiz do Trabalho no TRT-RJ, mestre e doutor em Direito pela PUC-SP e membro da Associação Brasileira de Magistrados do Trabalho (ABMT).
Revista Consultor Jurídico, 20 de junho de 2023
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