05 de novembro, 2024

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A pobreza hidrofóbica

Foto: Roque de Sá/Agência Senado

Por Leonardo Sant’Anna

Viajando na história

No ano de 2019 tive uma experiência que me pareceu ser algo vindo de filmes e séries dos anos 60 como Túnel do Tempo e Viagem ao Centro da Terra. Nessa peregrinação desembarquei na cidade de Coxim, estado de Kerala, oeste da Índia.

O local foi digno de fotos, vídeos e curiosidades inimagináveis, como a visita à primeira igreja europeia construída na Ásia, onde está enterrado Vasco da Gama. Povo de sorriso farto e acolhimento indescritível. Eles nos abraçam pelo olhar.

Eu estava focado em uma coleta acadêmica que fazia parte de uma pesquisa mundial que denominei Security Tour. Ela foi, posteriormente, transformada em um conjunto de vídeos sobre segurança em diversas partes do globo. Ali pude comprovar que as vacas realmente são animais sagrados. É verdade. Elas andam soltas nas ruas.

Consegui rever instrumentos e tarefas laborais que talvez você só conheça por imagens, como ferro à carvão, áreas de lavagem coletiva de roupa em série, com trabalho feito por lavadeiras profissionais. E andei em uma espécie de mini UBER (que até enguiçou, o tradicional Tuk-Tuk, um transporte que é metade moto e metade carro.

A exuberância da cultura e da história, aliada a uma riqueza inimaginável da Índia no século 18 contrasta, hoje, com um país muito pobre. Simples assim. Mesmo tendo em sua trajetória uma das terras mais férteis do mundo, vi durante minha pesquisa pessoas comendo coletivamente na rua, em vasilhas plásticas ou metálicas. A Índia é um país pobre!

Realidades que confundem

A Índia é o país que, pasme você, tem como paradoxo, a maior indústria cinematográfica do mundo. Não estamos falando de Hollywood, nos EUA, mas de Bollywood. E para coroar, uma população quase sete vezes maior do que a do Brasil. Para podermos comparar com nossas condições econômicas e sociais, estamos diante de um país com 50 pontos atrás do Brasil quando falamos de IDH – Índice de Desenvolvimento Humano. São essas três letrinhas que classificam os países em relação a serem desenvolvidos, estarem em desenvolvimento ou subdesenvolvidos. Uma classificação ruim nessa escala gera alguns medos, com o topo sendo ocupado pelo medo que se banha nas águas do crime.

Eu jamais poderia deixar de citar todas as rivalidades religiosas, diferentes classes e castas sociais e rebeliões a partir dos anos 1800.  Foi uma divisão que transformou uma índia unificada em três países. Hoje existem também Bangladesh e Paquistão, que já fizeram parte de apenas uma sociedade antes dos conflitos estratégias de poder que dividiram a região. Essa divisão literalmente sangrou as robustas riquezas indianas.

Ali 450 milhões de indivíduos vivem com menos de um dólar por dia. A concentração de renda também é um fator de grande divisão entre os 10% da população que possui a maior parte da riqueza do país e o restante, que vive em áreas rurais e permanece utilizando condições precárias para que tenha a sua subsistência.

E as águas do crime?

O que você pode imaginar é que a pobreza elevaria o grau de insegurança daquele país, certo? Errado! Nesse momento surge a maior questão desse nosso bate-papo comparativo: como um país com essas características sociais e econômicas pode ter seis vezes menos crimes de homicídio que o Brasil?

Essa resposta tem uma construção multifatorial. Religião, costumes locais, colonização, cultura e localização geográfica entram nessa equação. Contudo, uma fórmula chamada justiça criminal emerge adoçando essa comparação dos desvios de conduta e realização de delitos sobre a Índia e o Brasil.

Esse tal tipo de justiça fundamenta itens que transformam o comportamento social em algo positivo! Tudo que está envolvido para que tenhamos o cumprimento das leis, desde leis e normas adequadas e atualizadas até organizações policiais, juízes e sistema carcerário, reflete na paz social. O resultado disso aparece quando membros das diversas comunidades freiam seus comportamentos ao pensarem em praticar delitos graves.

A Índia, em alguns pontos que fogem da curva de respeito a regras de respeito, mesmo pelo que descrevi, tem problemas. O país está longe de ser um paraíso. Um dos exemplos está no fenômeno do estupro coletivo, que assombrou mulheres daquele país durante anos e trouxe no ano de 2012 uma realidade macabra, quando depois de ser violentada por diversos homens uma jovem morreu posteriormente no hospital. O ano de 2019 foi um marco naquele país ao condenar os acusados à pena de morte, sete anos depois de uma grande convulsão mundial em torno do tema.

Estive sim em um país pobre! Mas um país pobre onde não senti medo! Um país pobre que não tem furtos, roubos e homicídios em escala quase pandêmica, como nos obrigamos a enfrentar no nosso.

Experimentei e posso lhe descrever uma avassaladora diferença: fica claro que a dignidade, honestidade e o respeito social entre as pessoas e os bens que possuem não é medido pela quantidade de moeda corrente que circula nas suas mãos. É medido pelos princípios que as regem e por um Estado que se preocupe em construir colunas firmes para a proteção de todos.

Uma pobreza ungida em óleos nobres jamais se mistura nas águas da criminalidade. Ela se torna naturalmente hidrofóbica.

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