Notas & Informações, O Estado de S.Paulo
O momento que o País atravessa é crítico para a manutenção da democracia. “A se manter o cenário atual, não vejo como se possa evitar um desastre econômico, social e humanitário. É um caminho que pode levar à ruptura política”, disse o historiador José Murilo de Carvalho, em reportagem do Estado sobre os impactos da epidemia de covid-19 na vida política do País.
O risco não é desprezível. A rede bolsonarista, com o próprio presidente Jair Bolsonaro à frente, dedica-se diariamente a atacar as autoridades que assumiram a responsabilidade de enfrentar a epidemia com medidas duras de restrição econômica e isolamento social. A intenção é disseminar o medo do caos, de modo a criar uma atmosfera favorável a soluções liberticidas. Decerto embala os sonhos bolsonaristas o exemplo da Hungria, que acaba de conceder poderes ilimitados ao premiê ultradireitista Viktor Orbán, com a desculpa de que isso é necessário para conter a disseminação do novo coronavírus.
Ao mesmo tempo, a gravidade da situação, somada à atuação irresponsável e belicosa do presidente Bolsonaro, está provocando uma raríssima articulação política no País. Políticos de diversas tendências têm deixado momentaneamente suas divergências de lado para somar esforços em nome da imperiosa necessidade de salvar vidas e dar condições para que a população atravesse essa provação sem grandes privações.
Um exemplo recente disso foi a reação do governador de São Paulo, João Doria, a um elogio maroto feito pelo ex-presidente Lula da Silva, um de seus maiores rivais, a respeito de sua atitude firme na crise. É evidente que Lula só estava interessado em usar Doria como escada para atingir Bolsonaro, mas mesmo assim o governador paulista não deixou passar a oportunidade para enfatizar a necessidade de união de forças distintas: “Temos (Doria e Lula) muitas diferenças, mas agora não é hora de expor discordâncias. O vírus não escolhe ideologia nem partidos”, escreveu o governador no Twitter.
Para o cientista Marco Aurélio Nogueira, o comportamento hostil de Bolsonaro isola o presidente e reforça o protagonismo do Congresso, que já se verificava antes mesmo da epidemia, além de estimular as forças democráticas – liberais, social-democratas e da esquerda moderada – a “encontrarem um eixo programático de articulação”. É o que acontece em democracias maduras diante de crises profundas como a que atravessamos. “Essa possibilidade de articulação será o principal antídoto contra o acirramento das relações institucionais e sociais”, disse o professor Marco Aurélio Nogueira.
Assim, está na política a vacina contra a epidemia de autoritarismo e impostura que o presidente Bolsonaro deflagrou no País desde sua eleição – considerada pelo historiador José Murilo de Carvalho uma calamidade anterior à do coronavírus. Do mesmo modo, está na política a elaboração de saídas não apenas para os problemas imediatos decorrentes da epidemia, mas também para a profunda crise que o País terá que administrar quando passar a fase mais aguda da doença.
“É hora da política séria, objetiva, com letra maiúscula”, opinou o fundador do movimento RenovaBR, Eduardo Mufarrej. “A sociedade precisa cobrar que as lideranças do País deixem as disputas por espaço de lado e se concentrem em construir soluções em conjunto. Vírus não respeita fronteiras, não distingue raças, não se importa com ideologias.”
É esse o grande esforço que o País deve empreender hoje: superar a polarização que tanto tem marcado o ambiente político desde a campanha presidencial de 2018 e reavivar a política civilizada, reaprendendo a ouvir vozes divergentes e a aceitar o que a maioria decidir, dentro das regras democráticas e com respeito às instituições. Isolar Bolsonaro não basta; é preciso desmoralizar a ideologia deletéria que o sustenta. Para isso, a política deve ser resgatada do limbo em que foi atirada em 2018 pelo bolsonarismo e valorizada como único meio de impedir que o País complete a obra de autodestruição que petistas e bolsonaristas, há tempos, estimulam com tanto ardor.
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