POR REDAÇÃO
Rubens Naves, Advogado, Presidente do Conselho do Centro de Referência em Informações Ambientais (CRIA ), Conselheiro e Ex-Presidente da Fundação Abrinq, Conselheiro da Transparência Brasil, Membro da Comissão do Terceiro Setor da OAB-SP e sócio fundador de Rubens Naves Santos Jr. Advogados
Diante das pesquisas de opinião, podemos identificar um abrangente consenso de ampla maioria da população brasileira que, mesmo tendo preferências político-ideológicas variadas, concordam que o país vem piorando e está no rumo errado. Trata-se de uma percepção coerente com a trajetória nacional em praticamente todas as principais áreas de atividade e governo, ao longo dos últimos anos. Crescimento econômico, emprego, salários, desigualdade e pobreza, meio ambiente, saúde, educação, ciência, relações internacionais, higidez democrática: por todos esses parâmetros e em todas essas áreas, o declínio têm sido grave e evidente.
Nesse cenário, agravado por vasto desmonte de instrumentos governamentais e estatais de implementação de direitos e políticas públicas – fenômeno flagrante em cada uma das áreas mencionadas –, as eleições deste ano serão marcadas pela busca de caminhos de reconstrução nacional.
As propostas e discussões sobre possíveis caminhos de reconstrução – e de necessária renovação, uma vez que a atual realidade, brasileira e internacional, demanda novas ideias e alternativas – devem incluir um fator decisivo, sem o qual os avanços almejados dificilmente terão abrangência, consistência e eficiência necessárias: ampla e estratégica participação da sociedade civil, inclusive na prestação de serviços públicos.
Lembrar para avançar
A percepção da necessidade de maior participação de organizações da sociedade civil, como prestadores de serviços públicos, na construção de um Brasil mais desenvolvido, justo e democrático inspirou projetos de governo no final do século passado.
O aumento e a qualificação da participação de organizações da sociedade civil no provimento de serviços públicos eram metas centrais do projeto de reforma do Estado elaborado no primeiro mandato presidencial de Fernando Henrique Cardoso. Iniciativa que teve como principal articulador o economista Luiz Carlos Bresser-Pereira, que, em 1995, assumiu o cargo de ministro da Administração e Reforma do Estado.
Os objetivos das propostas articuladas por Bresser-Pereira eram a superação do excesso de burocracia e formalismo estatais, e da falta de instrumentos e incentivos para o constante aprimoramento dos serviços prestados e para a busca efetiva de resultados concretos norteados pelo bem comum. Outro avanço pretendido era a maior participação da sociedade e da cidadania, tanto na própria concepção e prestação de serviços públicos quanto no seu monitoramento, controle e aperfeiçoamento.
O projeto do Ministério da Administração e Reforma do Estado visava a formular as bases legais de um novo modelo de prestação de serviços públicos, mais flexível e permeável à criatividade e inovação, norteado pela busca dos maiores benefícios e progressos sociais possíveis com os recursos disponíveis. Não se tratava de perseguir uma redução do Estado, muito menos do setor público como um todo. A visão que se buscava realizar era de um Estado mais qualificado e eficaz, prestador de parte importante dos serviços públicos necessários. Estado que se tornaria articulador estratégico de um crescente setor público não estatal, capaz de, sob a coordenação do poder público – num processo de governança cooperativa com dinâmica dialógica de tomada de decisões –, expandir a realização dos direitos humanos, sociais e constitucionais país afora, além de fomentar o desenvolvimento cultural, científico e tecnológico.
Era uma perspectiva alinhada à tradição social-democrata que, há época, norteava, em boa medida, o partido político que chegara à Presidência, o PSDB. Sob influência, então, de líderes como André Franco Montoro, defensor e promotor da expansão e efetividade de direitos sociais de gestões públicas participativas, o Partido da Social Democracia Brasileira deixou como um dos seus mais valiosos legados de governo modelos e experiências de provimento de serviços pelo setor público não estatal.
Desde então, esse modelo vem propiciando parcerias entre o Poder Público e instituições sem fins lucrativos do chamado Terceiro Setor, que prestariam serviços públicos não exclusivos do Estado. Formalizadas por contrato, essas parcerias permitiram o repasse de recursos públicos às instituições sem fins lucrativos, que, por sua vez, assumiriam o compromisso de cumprir obrigações e metas.
Se bem-sucedida, a reforma idealizada por Bresser-Pereira e seus colaboradores conduziria a um enxugamento de parte das estruturas do Estado. Mas, como um todo, o Setor Público, composto também por instituições não-estatais, seria expandido e fortalecido. E os serviços públicos aumentariam em quantidade e qualidade.
Do modelo à realidade
Peça central do projeto reformador iniciado em 1995, a Lei das OS foi aprovada em 98. A partir daí, Organizações Sociais foram se disseminado pelo País – tanto na forma de entidades vinculadas ao governo federal, quanto por meio de leis e parcerias estaduais e municipais para a prestação de serviços públicos não exclusivos do Estado.
Nas áreas de ensino, pesquisa científica, desenvolvimento tecnológico, proteção e preservação do meio ambiente, cultura e saúde, pessoas jurídicas de direito privado, sem fins lucrativos, passaram a gerir recursos públicos e a prestar serviços em todas as regiões do Brasil.
Além de estabelecer os requisitos necessários para a qualificação de uma pessoa jurídica como Organização Social, a lei também fixou o modelo contratual para suas parcerias com o poder público: o contrato de gestão, instrumento elaborado para garantir, por um prazo determinado, tanto a perseguição de metas de interesse público por parte das OS, quanto o repasse dos recursos necessários por parte do Estado.
De acordo com o Mapa das Organizações da Sociedade Civil, o número dessas entidades saltou, no País, de um total de cerca de 530 mil em 2010, para mais de 800 mil em 2020. Em fevereiro de 2022, o total de entidades cadastradas no Mapa mantinha-se no patamar de 815 mil registros.
Plataforma virtual colaborativa de transparência pública criada em 2016 por decreto da presidente Dilma Roussef, e gerida pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), o Mapa das OSCs abrange todas as instituições não estatais, sem fins lucrativos, legalmente constituídas, autoadministradas e “voluntárias” (no sentido de que podem ser criadas livremente por qualquer grupo de pessoas). OSC, portanto, é uma nova nomenclatura para organização não governamental (ONG), categoria que inclui diversos tipos de entidades, como associações, fundações, organizações religiosas, organizações sociais (OS) e organizações da sociedade civil de interesse público (OSCIP).
A discussão aqui proposta diz respeito a todo o conjunto das OSCs – cujo marco legal foi estabelecido em 2014, também no governo Dilma –, destacando-se, nesse universo, as organizações sociais (OS) por sua especial relevância, uma vez que são fruto direto do modelo de reforma do Estado proposto na década de 1990 e seu desenho institucional é vocacionado para a prestação contínua de serviços públicos de amplo impacto em considerável escala (diferentemente das OSCIPs, cujo modelo é mais adequado para estruturas menores e prestação mais específica ou pontual de serviços).
Essas características das OSs explicam por que, apesar de o número de entidades desse tipo corresponderem a uma pequena fração do total das OSCs (segundo relatório do Mapa das OSCs, havia 1.114 OSs no país, em 2019), sua relevância, em termos de serviços prestados e recursos geridos é muito grande. Como a maior parte das OSs são estaduais e municipais, entretanto, as consolidações de dados relativos aos recursos públicos recebidos feita pelo Mapa, por se limitar aos empenhos e transferências federais, não propicia uma visão do peso dessas entidades na prestação de serviços públicos em âmbito nacional.
De acordo com o relatório “O governo federal e as OSCs: recursos públicos e parcerias”, entre 2010 e 2018, o governo federal repassou para OSCs um total de R$ 118 bilhões. As entidades contempladas, no entanto, correspondiam a apenas 2,7% do total de OSCs existentes no Brasil.
Para se ter uma ideia do que não está incluído nessas contas federais, de acordo com estudo da Fiocruz publicado em 2021, o governo do estado de São Paulo, empenhou R$ 5,6 bilhões em contratos de gestão de organizações sociais de saúde (OSS) em 2019. Já no município de São Paulo, onde cerca de dois terços dos serviços de saúde são administrados por OSs (aproximadamente 90% das unidades básicas de saúde são operadas por organizações sociais), os repasses orçamentários para essas entidades (as OSS, organizações sociais da saúde) têm ficado na casa dos R$ 5 bilhões anuais, quase metade das verbas municipais para saúde.
Os avanços conquistados nas últimas décadas, graças a esse modelo – sobretudo nas áreas da saúde, cultura, ciência e inovação –, foram múltiplos e expressivos. O reconhecimento dessa evidência histórica pelos gestores públicos é demonstrado na sua ampla utilização por gestões dos mais variados perfis ideológicos. Apesar disso, o tema dificilmente recebe tratamento qualificado nas reflexões político-partidárias e em programas de governo.
Esse contraste entre a realidade das gestões públicas e o debate político-partidário e midiático, no caso da participação das OS em especial e do Terceiro Setor em geral, tem um motivo central. Quando cumpre o seu papel, mantendo-se distinto tanto do Estado quanto da iniciativa privada, combinando a vocação e a missão públicas do primeiro com a flexibilidade focada em resultados do segundo, o Terceiro Setor (ou, se preferirmos, o setor público não estatal) não combina com as visões de mundo e os discursos da direita privatista e da esquerda estatizante, que ainda dominam o debate político. E as características do Estado e da iniciativa privada que o Terceiro Setor não abriga – corporativismo autocentrado e busca do lucro – o tornam rival de interesses organizados com base nessas duas lógicas. Interesses poderosos, mas que não superam uma clara realidade: Estado e mercado, mesmo necessários, são insuficientes ou inadequados para o atendimento de parte importante das nossas necessidades coletivas.
Hoje, rumo a 2023
A atual necessidade de rápida reconstrução, qualificação e avanço da capacidade do poder público brasileiro como provedor de serviços e fomentador de desenvolvimento, sobretudo em um contexto de escassez de recursos, requer olhar atento para o papel que deverá ser desempenhado pelo setor público não estatal no premente esforço de retomada do desenvolvimento socioeconômico.
Mais de 25 anos depois da elaboração do modelo que impulsionou parcerias entre instituições de governo e Estado e organizações da sociedade civil, é hora de compreender essa história e colocar o tema no seu devido lugar: entre as prioridades estratégicas dos postulantes à liderança do País. O trabalho de identificar o que deve ser expandido e o que pode ser aprimorado nos arranjos existentes deve começar já. Juntamente com a formulação de novas formas de parcerias para o enfrentamento de novos desafios. Por exemplo, para a área do meio ambiente, que demanda projetos de mitigação e adaptação em relação às mudanças climáticas, proteção aos recursos hídricos e aos biomas com sustentabilidade socioambiental – prioridades que só serão bem atendidas com multiplicação de parcerias e sinergias.
A gravidade da quadra histórica exige superação de interesses parciais, aquém da busca do bem comum, e de visões inadequadas para o enfrentamento da realidade que se apresenta.
É hora de abrir e qualificar o debate sobre como expandir e aprimorar a participação de organizações da sociedade civil no grande projeto de reconstrução e desenvolvimento do qual nação precisa e que a cidadania demanda de suas lideranças.
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