18 de setembro, 2024

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A significância de um desgoverno desastrado

Foto: Fabio Rodrigues Pozzebom/Agência Brasil

Por José Nêumanne

No sábado 22 de janeiro, em Eldorado Paulista, aonde fora para o velório e o enterro de sua mãe, Olinda, Jair Bolsonaro disse publicamente que seria “insignificante” o total de crianças mortas no Brasil pela pandemia da covid-19. Como de hábito, mentiu descaradamente, pois a Câmara Técnica de Assessoramento em Imunização (CTAI), grupo técnico do Ministério da Saúde, apontou, em dezembro, que 1.449 crianças haviam morrido contagiadas pelo novo coronavírus.

A declaração estúpida provocou uma onda nacional de indignação, devolvendo a intolerável falta de empatia por mortes alheias ao lar de seu dono. A cruel impropriedade da frase do chefe do governo é óbvia, mas a pecha não é apropriada. Raríssimos são os chefes de governo sob quaisquer regimes na História que já tenham manifestado tais perversidade e desumanidade nesse tom cínico, cretino e mortífero. Mas, como nos casos históricos aos quais se associa o presidente brasileiro, isso está muito distante da definição de insignificante. Nunca ele o foi. Quando era capitão, seu comandante, o general Leônidas Pires Gonçalves, o considerava incapaz de alcançar a patente de major para cursar a Escola Superior de Aperfeiçoamento de Oficiais (Esao), e exigiu sua retirada da ativa. E ele já não o era. Pois protagonizou, como de hábito de forma infame, uma exceção absurda, ao ser extinta uma sentença unânime de prisão por terrorismo para evitar um escândalo da Força num momento delicado da História e, assim, não comprometer a paz da transição da ditadura militar para a chamada Nova República. O “mau militar” (apud Geisel) e simpatizante de golpistas frotistas conseguiu liberdade e autonomia para desempenhar funções legislativas ao longo de 30 anos na condição de chefe da esquadra dos também perdoados do crime grave da tortura, recebendo e apregoando torpezas tais e até a execução de inimigos do regime. Nessa condição, aproveitando-se de circunstâncias históricas favoráveis, ganhou uma eleição para a Presidência da República, onde se instalou com alforje, fuzil, filhos e apaniguados pregando a própria ignorância, como se fosse o suprassumo da virtude cívica e cristã.

No posto máximo de poder da privilegiatura, atacou as instituições democráticas amealhando com essa pregação e bilhões de reais em verbas públicas um rebanho que o manterá no comando de uma facção que, mesmo que seja despejada das culminâncias da glória e da força, não perderá a significância nem os privilégios da uma nomenklatura que tem bons motivos para manter subjugadas castas de sanguessugas nutridas à farta de sangue, suor e lágrimas dos deserdados.

Mas não é só. Enquanto estas linhas são escritas, os subordinados da pátria, que só ama os filhos perfumados, ainda não abandonaram a oportunidade de manter o cetro e o trono numa disputa eleitoral em que a democracia dos pais fundadores é vilipendiada a todos os momentos pelo cinismo, pela mentira e pela corrupção. Ainda faltam nove meses para a visita às urnas e quase um ano para a posse de quem a vencer. Até lá é muito significativa a capacidade de essa cristandade fake de fazer o mal

As perspectivas do Brasil neste último ano de desgoverno desastrado são lastimáveis, para dizer o mínimo. A máquina do Sistema Único de Saúde (SUS), que, apesar dos pesares, goza com justiça de boa reputação no mundo, está submetida a desordens absurdas de um cirurgião de renome, que se presta à total perda da reputação profissional em troca de um lugar ao lado do patrão superpoderoso. O ministro da Saúde, candidato a algum cargo do alto comando da privilegiatura política nacional, Marcelo Queiroga, chegou ao extremo da vassalagem ao decretar a exigência de uma prescrição médica para vacinar crianças de 5 a 11 anos, com imunização autorizada pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), cujo chefe foi escolhido pelo negocionista-mor entre militares de carreira que ele considera digno de lhe ser subordinado, desde que entregue autonomia e honra ao vade mecum de lendas e crendices absurdas que o capitão-terrorista perdoado pelo Superior Tribunal Militar (STM) retire de sua culatra de matador. O veneno da mentira é ministrado com fervor e submissão por esculápios de várias escolas, a começar do presidente do Conselho Federal de Medicina (CFM), Mauro Ribeiro, cuja pretensão a pajé supera qualquer juramento que tenha feito na vida ao molde do sábio grego Hipócrates.

Em torno desse balaio de mezinhas que, além de não curar, matam, lança uma mania nacional que viceja de forma mais permanente e contundente do que a gripe espanhola, a varíola ou o novo corunavírus: o conformismo. Como definiu o ex-reitor da Universidade de Brasília (UnB) Cristovam Buarque, em declaração ao blog do Noblat, que circula no Metrópoles, a substituição sistemática da indignação pela acomodação. “No conjunto, a sociedade brasileira optou pelo conformismo, que mantém as perversidades tão toleradas que nem são percebidas como imorais”, disse, lembrando que, neste ano do bicentenário da independência e do centenário de Darcy Ribeiro, essa verdade volta a se impor.

https://politica.estadao.com.br/blogs/neumanne/a-significancia-de-um-desgoverno-desastrado/

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