José Pastore
“Estamos juntos há vários anos. Esta empresa deve muito a você.
Mas, hoje em dia, o que você sabe não serve mais para a empresa;
e o que serve para a empresa você não sabe.
Por isso, lamento muito, mas tenho de dispensá-lo.”
Essa é a mensagem mais dolorosa que um empregado dedicado pode receber por ter se tornado obsoleto. Isso ocorre com frequência em vista da alta velocidade das inovações tecnológicas e baixa capacidade das sociedades para requalificar seus cidadãos. Daí a importância das instituições e programas de formação profissional.
Apesar disso, as ameaças de redução dos orçamentos das entidades do chamado Sistema S do Brasil se repetem a cada ano. Ora é um representante do Poder Executivo que deseja “passar uma faca” nos seus recursos; ora é a ameaça de outro ministro que anuncia a intervenção no sistema por decreto. Há também as ameaças de parlamentares que, por meio de projetos de lei, buscam transferir recursos para as mais variadas atividades como foi o caso recente da Embratur que pretendia utilizar verbas do SENAC para promover o turismo no país. Recentemente, até o Poder Judiciário vem sendo acionado com esse propósito. Esse é o caso de uma ação que corre no STJ para cortar drasticamente os recursos da formação profissional no Brasil.
O trabalho das entidades de formação profissional vem da década de 1940. Desde então a sua contribuição à formação do capital humano foi enorme e assim continua. São milhões de trabalhadores que recebem formação profissional, promoção cultural, amparo à saúde e tantas outras ações que pesam de modo significativo na formação do capital humano do Brasil. Muitas dessas atividades são extensivas às suas famílias.
Dessa forma, o Brasil vem procurando melhorar a sua força de trabalho e o próprio capital humano que, no novo conceito introduzido pelo Banco Mundial, engloba educação, qualificação profissional, saúde, cultura e habilidades socioemocionais.1
A criação dessas entidades teve origem na clara consciência que levou os empresários a mostrar para o governo que o país necessitava urgentemente de um sistema para qualificar os trabalhadores da indústria e do comércio, ao que o Presidente Getúlio Vargas respondeu: vocês conhecem a demanda e as necessidades especificas de formação dos trabalhadores. Por isso, proponho que vocês mesmos organizem esse sistema e paguem por ele. Do meu lado, farei com que essa contribuição seja rateada entre todos os empresários para que não haja os que apenas usufruem da mão de obra qualificada, sem nada contribuir.
Foi desse modo que, em 1942, o Brasil criou o SENAI e, em 1946, o SENAC. Trata-se de um sistema que é administrado e financiado pelos empresários que realmente conhecem as demandas de qualificação e tem a participação dos trabalhadores em vários dos seus conselhos. Todas entidades do Sistema S têm as suas contas permanentemente auditadas pelo Tribunal de Contas da União.
Esse sistema de compartilhamento entre os empresários teve tanto sucesso que, em poucos anos, foi difundido na América Latina e hoje é encontrado em praticamente todo o mundo. A eficiência desse modelo é reconhecida por inúmeros especialistas.2
Se, naquela época, a formação qualificação profissional era crucial para a produtividade e competitividade das empresas, imaginem hoje, no meio dessa fantástica revolução tecnológica que atinge todas as áreas de atividades e que exige programas de qualificação e requalificação continuada para que os trabalhadores e as empresas possam acompanhar e se beneficiar das novas tecnologias. Em trabalho recente, Luís Guilherme Schymura alerta para a urgente necessidade de se ampliar os programas de qualificação profissional.3 A razão dessa recomendação é evidente: atualmente, as máquinas e os equipamentos barateiam a cada dia e podem ser comprados com certa facilidade. O sucesso de quem compra e do próprio país dependerá de ter profissionais capazes de utilizá-los de maneira vantajosa.
Centenas de pesquisas indicam que os brasileiros que seguem o ensino técnico usufruem de estabilidade no emprego e rápida ascensão social – que superam o que ocorre com os que passam pelos cursos médios convencionais e até mesmo por escolas de nível superior, sem completá-las.4 Em tese recente, ficou demonstrado que as escolas do Sistema S estão entre as melhores organizações de formação profissional.5
Resultados desse tipo são encontrados de maneira abundante na literatura especializada.6 Um estudo realizado com uma metodologia robusta mostrou que os rendimentos dos brasileiros que cursaram escolas técnicas ganham 12,5% mais dos que fizeram apenas o curso médio convencional.7 Os egressos do SENAI e SENAC se colocam mais depressa no mercado de trabalho, ganham mais do que a média nos profissionais de sua categoria, têm menos rotatividade e amargam menos desemprego quando comparados a trabalhadores que não passaram por programas de qualificação profissional.8
Mas, formação profissional não é para amadores. Trata-se de uma atividade que requer pessoal especializado e devotado assim como equipamentos permanentemente atualizados. Além do mais, é preciso conhecer bem a demanda atual e futura das várias profissões. Sim porque o alvo a ser atingido é móvel e se modifica de acordo com a conjuntura econômica e com as tendências de modernização tecnológica e formas de produzir e vender. Para ter sucesso, a pontaria é essencial. Daí a importância dos sinais dos empresários para manter as entidades de ensino sempre atualizadas com seus currículos, professores e equipamentos.
Além disso, para dar certo, a formação profissional precisa contar com alunos interessados e motivados para aprender, e isso depende de estimulação adequada por parte dos professores.9 Não se pode ignorar os planos de vida dos adolescentes e dos adultos que entram em cursos de qualificação profissional. Eles precisam ser permanentemente alertados para as vantagens da boa qualificação e isso só pode ser feito com exemplos concretos dos egressos que passam por essas escolas.
No caso das escolas do Sistema S, os resultados são claros. Os egressos de cursos técnicos têm, em media, uma elevação de 18% em seus rendimentos.10 Há estudos em que a renda dos egressos desses cursos chega a ser 37% maior do que a dos trabalhadores que não passaram por esse tipo de treinamento.11 Uma boa formação profissional aumenta também a possibilidade de as pessoas aprenderem novas tecnologias e gradualmente migrarem para profissões próximas da sua e que remuneram melhor. Para tanto, a capacitação teórica e conceitual do profissional é crucial. Isso requer muita experiência, competência profissional e atualização tecnológica.
Não há dúvida que uma boa formação profissional é de vital importância para elevar a produtividade, melhorar a competitividade, estimular o crescimento econômico, reduzir o desemprego e retirar grupos desfavorecidos da situação de pobreza. Nesse sentido, é de igual importância o trabalho desenvolvido pelas entidades de promoção social (SESI e SESC) para a prevenção de acidentes; proteção da saúde dos trabalhadores e de seus familiares; cuidados na gestação; educação infantil, fundamental e de nível médio; assistência médica e odontológica para crianças e adultos; assim como atividades esportivas e culturais dos mais variados tipos, que compõem o trabalho de formação e melhoria do capital humano dos brasileiros.12
O impacto positivo das entidades que se dedicam à formação e enriquecimento do capital humano é encontrado no mundo todo. Um estudo recente apresenta uma vasta literatura mostrando esses resultados em mais de 100 países.13
Além da demanda por habilidades cognitivas, tanto na indústria como no comércio e serviços, aumenta cada vez mais a demanda por habilidades socioemocionais que permitem às pessoas trabalhar em grupo, exercer liderança, tratar os colegas e os consumidores com cortesia e respeito e cultivar, em ultima análise, a boa ética do trabalho. As habilidades socioemocionais resultam da ação integrada das escolas do Sistema S onde os valores humanos e a ética do trabalho são explicitamente cultivados.
Essa ação reflete, em grande parte, os valores dos próprios empresários. Na minha longa carreira de pesquisador, nunca encontrei uma escola do Sistema S com as paredes pichadas, vidros quebrados, banheiros interditados, desorganização dos equipamentos, agressão aos professores, desrespeito às boas normas de conduta, etc. O estilo de trabalho das escolas, nesse caso, reflete o estilo de trabalho dos empresários. Não conheço tampouco empresários de sucesso que trabalhem de forma desleixadas, em ambientes desorganizados e desrespeitando os consumidores. Em outras palavras, o “ethos” das entidades educativas e sociais do Sistema S decorre da intima interface entre as empresas e as escolas. Isto também conta muito para a aprendizagem e para a produtividade do trabalho.
Paul Krugman costuma dizer que a produtividade não é tudo, mas é quase tudo para o crescimento econômico e progresso social. Parodiando o Prêmio Nobel de 2008, podemos dizer que a formação profissional não é tuto, mas é quase tudo para a produtividade e a competividade.
Como no Brasil, a produtividade média do trabalho é baixíssima, as entidades que se dedicam à formação profissional tornaram-se um ativo estratégico. A chave do seu sucesso está na qualificação e dedicação dos professores, bons equipamentos e estimulação dos interesses por parte dos alunos.14
O Brasil está atrasado nesse campo. Entre nós, menos de 10% dos adolescentes passam por formação profissional adequada enquanto a média no mundo é de 40%. Na República Checa, é de 70%. Em artigo assinado, três empresários de referência no setor industrial clamam pela necessidade de acelerar o ciclo de inovações tecnológicas e de preparação dos profissionais brasileiros. Essa providência precisa ser levada a sério, dizem eles, porque “o Brasil nunca se prepara devidamente e em tempo para enfrentar os problemas anunciados”.15 Portanto, se há alguma coisa a fazer nesse campo é aumentar o número de escolas profissionais de boa qualidade e os centros de promoção da saúde, educação e cultura, como as do SENAI, SENAC, SESI e SESC. Nada justifica querer cortar os seus recursos e asfixiar o seu trabalho.
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1 World Bank, The Changing Nature of Work, Washington: The World Bank, 2019; The Human Capital Index 2020 Update, Washington: The World Bank, 2021.
2 Adrian Ziderman, Funding Mechanisms for Financing Vocational Training: An Analytical Framework, Bonn: Institute of Labor Economics, 2016;
3 Luiz Guilherme Schymura, “Políticas que facilitam o ingresso no mercado de trabalho brasileiro”, Carta de Conjuntura, Rio de Janeiro: FGV/Conjuntura Econômica, 3/8/21.
4 Sergio Firpo e Alysson Portella, Indicadores da qualidade dos egressos do ensino técnico, São Paulo, Itaú, Educação e Trabalho, 2021.
5 Marcelo Augusto Favalli, Profissões do futuro: quarta revolução industrial e a capacitação de mão de obra com base no modelo suíço-germânico. Pontificia Universiade Católica de São Paulo: Tese de Mestrado, 2021
6 Werner Eichhorst e colaboradores, “A roadmap to vocational education and training systems around the world”, Bonn: Institute of Labor Economics, 2012
7 Citado por Luís Guilherme Schymura, op. cit.
8 O SENAR, igualmente, tem qualificado trabalhadores em diversas tecnologias químicas, biológicas e mecânicas usadas no setor agropecuário assim como tem proporcionados treinamentos rápidos referentes a técnicas especificas. Todos com resultados positivos para os trabalhadores e produtividade das fazendas.
9 Claudio de Moura Castro e Luís Norberto Pascoal, Cuidando dos que sobraram: uma proposta (ou Salvando os abandonados da escola), no prelo.
10 “Curso técnico aumenta renda média do trabalhador em 18%”, Brasília: Estudo do SENAI, 2018. Disponível em: https://incisaimam.com.br/curso-tecnico-aumenta-renda-media-do-trabalhador-em-18-diz-estudo-do-senai/
11 Edson Roberto Severnini e Verônica Inês Fernandez Orellano “O efeito do ensino profissionalizante sobre a probabilidade de inserção no mercado de trabalho e sobre a renda no período Pré-PLANFOR do Brasil”, Revista Economia, Janeiro/Abril 2010. Disponível em: http://www.anpec.org.br/revista/vol11/vol11n1p155_174.pdf
12 Thais Waideman Niquito e colaboradores, “Avaliação de impacto das assistências técnicas do Sistema S no mercado de trabalho”, Revista Brasileira de Economia, 72 (2), 196-216, 2018.
13 Citado por João R. Ferreira e Pedro S. Martins, “Can vocational education improve schooling and labour outcomes? Evidence from a large expansion”, Bonn: Institute of Labor Economics, 2023
14 Gustavo Ioschpe, “Seminário Competitividade” – Estadão, 20/11/13.
15 Horácio Lafer Piva, Pedro Passos, Pedro Wongtschowki, “A hora da educação profissional”, Valor, 19/2/21.
José Pastore
Professor de relações do trabalho da USP e membro do CAESP – Conselho Arbitral do Estado de São Paulo.
https://www.migalhas.com.br/depeso/395848/as-ameacas-ao-sistema-s
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