Quando se fala em insegurança alimentar no Brasil, frequentemente se aponta o paradoxo de um país que é considerado o “celeiro do mundo” onde milhões de pessoas passam fome. A rigor, não há contradição: se tantos brasileiros fustigados por um desempenho medíocre da economia nacional não têm emprego e renda para pagar pelos alimentos produzidos, então outras pessoas ao redor do mundo pagarão. O fato de que a contradição entre a abundância (da produção) e a carência (no consumo) seja só aparente não a torna menos chocante.
Tão ou mais chocante é o contraste entre a quantidade de pessoas que passam fome e a quantidade de comida jogada no lixo. Não só no Brasil, mas no mundo. Segundo a ONU, até 828 milhões de pessoas, quase 10% da população mundial, passam fome. Ao mesmo tempo, cerca de um terço de todo alimento produzido no mundo é perdido ou desperdiçado – o suficiente para alimentar 1 bilhão de pessoas.
A ONU estima que, descontadas as perdas durante a produção, só a comida desperdiçada chegue a 931 milhões de toneladas por ano (121 kg per capita): 61% nas casas, 26% nos serviços de alimentação e 13% no varejo. Segundo a Embrapa, no Brasil o desperdício do varejo em diante chega a 60 kg per capita por ano.
Reduzir as perdas e desperdícios implicaria ganhos como o aumento da produtividade e do crescimento econômico; mais segurança alimentar e nutrição; e mitigação de impactos ambientais, em particular a redução da pressão sobre o uso de recursos naturais (terras e águas) e dos gases de efeito estufa emitidos pela comida em decomposição. Calcula-se que o desperdício de alimentos seja responsável por 8% a 10% das emissões globais, pelo menos o dobro das emissões da aviação.
Como mostrou reportagem do Estadão, o problema do desperdício não é um só, mas muitos, desde falhas na estocagem e refrigeração a padrões excessivamente rigorosos ou meramente estéticos dos supermercados, mau planejamento nas compras domésticas ou porções excessivas em restaurantes. Nos EUA, por exemplo, 75% do que é descartado em restaurantes vêm de alimentos pagos, mas não consumidos.
Há uma série de iniciativas ao redor do mundo voltadas a promover a prevenção do desperdício e o reaproveitamento de alimentos. Nos EUA, por exemplo, uma startup facilita a compra de produtos defeituosos, mas aptos ao consumo, rejeitados pelos supermercados. Outra desenvolveu um revestimento à base de plantas para fazer com que as frutas durem mais. Há vários aplicativos que oferecem descontos em comida de restaurantes prestes a ser jogada fora.
Além de programas de conscientização, incentivos e instrumentos para vendedores e consumidores reduzirem o desperdício, há medidas mais ambiciosas. Na França e na Califórnia, por exemplo, foram promulgadas leis que obrigam supermercados e restaurantes a doar alimentos consumíveis que seriam descartados.
O Brasil aprovou em 2020 uma lei que permite a produtores e fornecedores doar excedentes não comercializados, desde que estejam dentro do prazo de validade, não tenham comprometidas sua integridade e sua segurança sanitária e tenham mantidas suas propriedades nutricionais. A lei removeu uma barreira importante às doações, ao determinar que os doadores só serão responsabilizados penalmente por possíveis danos se agirem com dolo. Mas isso, por si só, não tem sido suficiente. Ainda será preciso desenvolver sistemas mais eficientes de coleta e distribuição.
De um modo geral, falta uma maior cooperação entre o poder público e a iniciativa privada, seja na formulação de dados e indicadores sobre a perda e desperdício, seja nas estratégias de redução, seja nas estratégias de resgate e reutilização, seja, por fim, na infraestrutura de compostagem e reciclagem (para os alimentos inaptos ao consumo humano).
Se tantos brasileiros passam fome, não é por falta de comida. O Brasil produz abundantemente. O que falta é renda. Além disso, entre produtores, vendedores e consumidores há um imenso desperdício. Neste caso, estão faltando inteligência, vontade e cooperação.
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