18 de setembro, 2024

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Câmara debate venda de medicamentos em supermercados, mas proposta enfrenta oposição

Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil

A Comissão de Saúde da Câmara dos Deputados promoveu uma audiência pública na terça-feira, 13, para debater o Projeto de Lei 1774/19, que propõe a venda de medicamentos isentos de prescrição em supermercados. O objetivo da medida é ampliar a disponibilidade desses produtos e facilitar o acesso. Entretanto, a proposta enfrenta forte oposição de representantes do setor farmacêutico, da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) e de entidades de defesa do consumidor.

Os medicamentos isentos de prescrição, também conhecidos como MIPs, são indicados para o tratamento de sintomas e condições de baixa gravidade. Conforme a Anvisa, esses remédios possuem reações adversas com casualidades conhecidas, baixo potencial de toxicidade, não geram dependência, são de fácil manejo e não apresentam riscos ao paciente.

Contudo, representantes da indústria farmacêutica argumentam que a aprovação do projeto provoca a banalização desses medicamentos. Para Fábio Basílio, representante da Federação Nacional dos Farmacêuticos (FENAFAR), é fundamental que um profissional da saúde tenha o controle desses produtos. “Esse projeto é maléfico para a sociedade e padece de grandes erros de elaboração e de apresentação. Não existem medicamentos inofensivos, que não tenham efeitos colaterais, então a orientação do farmacêutico é essencial”, afirma.

Em contrapartida, entidades ligadas ao setor de supermercados defendem que o projeto traz inúmeros benefícios. O representante da Associação Brasileira de Atacadistas e Distribuidores (ABAD), Alessandro Dessimoni Vicente, sustenta que a ampliação da comercialização aumentaria o acesso e a liberdade de autocuidado do paciente. “Os MIPs tem uma segurança muito grande e o projeto vai ampliar o mercado, trazer mais emprego, gerar mais imposto para o governo. Isso vai girar a economia de uma maneira virtuosa”, destaca.

Preocupação com a automedicação

O segmento farmacêutico atenta para os riscos associados ao aumento da automedicação caso o projeto seja aprovado. A automedicação pode agravar ou mascarar sintomas, gerar dependência ou resistência, causar intoxicações ou crises alérgicas severas e até mesmo levar ao óbito.

Uma pesquisa realizada pelo Instituto de Ciência, Tecnologia e Qualidade (ICTQ) revelou que 89% das pessoas se automedicaram em 2022 e, segundo a Associação Brasileira das Indústrias Farmacêuticas (Abifarma), o Brasil registra a cada ano cerca de 20 mil mortes consequentes do uso de fármacos por conta própria. Além disso, um estudo feito pela Kantar mostrou que os MIPs representaram 30,8% do volume de compras em farmácias e alcançaram 42 milhões de domicílios brasileiros em 2023.

Por isso, para o representante do Conselho Federal de Farmácia (CFF), Walter Jorge João, é preciso garantir o acesso alinhado com a preocupação social, sanitária e com a saúde da população. Ele pontua que a maioria dos danos causados por medicamentos são evitáveis e por isso a orientação de um profissional é imprescindível: “O acesso é importante, mas é necessário que venha seguido do cuidado à saúde das pessoas. Existem supermercados que já têm suas farmácias próprias do jeito certo de ser. Não podemos querer somente aumentar o ponto de venda.”

Por outro lado, dados da consultora IQVIA de 2023 mostram que o Brasil é o terceiro país do mundo com maior participação no e-commerce de fármacos, atrás apenas da Alemanha e dos Estados Unidos. Nos dois países a venda de MIPs em supermercados é regularizada, assim como no Canadá, Austrália, Reino Unido e em outros países europeus.

Os dados também relatam que 18% dos consumidores pesquisam e compram produtos farmacêuticos de forma online. Assim, entidades favoráveis ao PL argumentam que as vendas online estão em crescimento e já ocorrem sem a orientação direta de um farmacêutico.

Aumento dos pontos de venda

Outra questão em defesa do projeto é que nem todos os municípios brasileiros possuem uma farmácia. Segundo dados levantados pelo Sebrae, 95,94% dos municípios possuíam drogarias em 2022 e o país contava com mais de 190 mil estabelecimentos ativos. Para o representante da ABAD, o número não é suficiente para atender uma população de mais de 200 milhões de habitantes, o que gera um aumento da procura pelo Sistema Único de Saúde (SUS).

“Quando nasce uma comunidade, uma cidade nova, uma mercearia ou um supermercado é o primeiro estabelecimento criado. Qual é o problema desse lugar estar preparado para vender os MIPs dentro do contexto de uma regulamentação correta?”, questiona Vicente.

Essa discussão também abrange a permissão para que “estabelecimentos similares” a supermercados possam comercializar medicamentos, conforme previsto no projeto de lei. A ABAD destaca que, com a aprovação do PL, cerca de um milhão de pontos de venda estariam aptos a comercializar medicamentos.

Porém, para o setor farmacêutico é preciso que esses estabelecimentos sejam melhor caracterizados. “O que é similar a um supermercado? Uma quitanda, uma distribuidora, uma feira é similar? Esse ponto me causa bastante preocupação. O projeto pode até garantir o aumento do acesso, mas vai ser de pior qualidade”, diz Basílio, da FENAFAR.

Desafios de fiscalização de medicamentos em supermercados

Um ponto de preocupação é como será feita a fiscalização da venda dos MIPs em supermercados. Segundo a Anvisa, mesmo com a autorização de comércio, esses estabelecimentos estão sujeitos ao cumprimento da Lei 6360 que dispõe sobre a vigilância sanitária de produtos de interesse à saúde.

O representante da agência na audiência, Jean Carlo de Miranda, explica que os pontos de venda devem ser autorizados pelo Ministério da Saúde e licenciados pelos órgãos estaduais e municipais para ter o alvará sanitário. No entanto, esses locais também precisam ser vistoriados e inspecionados com frequência para atender diversos critérios de saúde pública. “A ampliação desse número de estabelecimentos vai gerar um impacto muito grande, porque, invariavelmente, esses estabelecimentos não serão vistoriados e fiscalizados de forma correta por incapacidade operacional. Nós não temos servidores suficientes para executar essa atividade”, afirma Miranda.

A Anvisa destaca ainda que a ampliação de estabelecimentos autorizados a vender medicamentos também traria mais dificuldade de rastreamento da origem desses produtos e dificultaria o combate à falsificação. Além disso, Miranda expressa preocupação quanto ao armazenamento dos remédios nos supermercados. “São substâncias químicas que dependem de condições específicas de armazenamento, de temperatura e umidade. Embora os grandes supermercados possam ter condições de se adequar, os pequenos dificilmente manterão esse tipo de condições”, relata o representante.

Para a ABAD, a segurança da venda de remédios está garantida, visto que  o segmento já é fiscalizado pela Anvisa. Vicente destaca que os estabelecimentos já cumprem as normas para manipulação de alimentos e de produtos perigosos, como os inflamáveis. “O nosso segmento atua dentro das regras e agregar os medicamentos nessa operação não vai ser nenhuma dificuldade para quem já cumpre a legislação”, garante Vicente.

Debate para liberação é antigo

O debate sobre a comercialização dos MIPs é antiga. Em 1995, 1998, 2008 e 2018 projetos de lei semelhantes foram arquivados pelo Congresso e duas Medidas Provisórias sobre o tema foram descartadas em 2011 e 2019. Apesar disso, a deputada relatora do PL 1.774/19, Adriana Ventura, do Partido Novo, enfatiza a necessidade de continuar discutindo o tema, não apenas para acompanhar as mudanças globais, mas também para amadurecer o debate no contexto brasileiro.

“As visões mudam e a gente tem que pensar no que é melhor para o cidadão brasileiro. A questão é trabalhar com essas divergências legítimas para ajustar o projeto. Vemos exemplos ao redor do mundo que mostram experiências bem sucedidas conciliando o acesso, o custo e a flexibilização”, pontua a deputada.

O mercado dos MIPs, também chamado de OTC (Over The Counter, “sobre o balcão” na tradução) , movimenta bilhões de dólares. Dados da IQVIA estimam que no Brasil o mercado OTC movimenta cerca de R$ 90 bilhões e deve chegar a R$ 130 bilhões até 2026.

Assim, para o vice-presidente da Associação Brasileira de Supermercados (ABRAS), Maurício Ungari, o projeto trata também de liberdade econômica, de livre iniciativa e de redução dos preços dos medicamentos. “Existem cidades que têm apenas uma farmácia e que têm margens muito altas de venda dos MIPs. Então, nós vamos criar uma livre concorrência. É um tema econômico também para o SUS, pois representa uma otimização dos custos da saúde pública”, argumenta.

A reunião para discussão do PL 1774/19 terminou sem consenso sobre o tema e novas audiências devem ser marcadas. O presidente da ABRAS, João Galassi, não descarta a possibilidade de alteração do texto da proposta para melhorar sua recepção. “Entendemos que não há por que colocar estabelecimentos similares, abrimos aí uma janela muito grande sem ter uma clareza. Outro ponto é abrir o mercado para os farmacêuticos. É muito importante que o setor também disponibilize para o consumidor a possibilidade de ter acesso a esse profissional”, reflete Galassi.

Para a deputada ainda é necessário buscar um consenso razoável entre as entidades. “Talvez o projeto ainda não esteja maduro e por isso vamos levando esse debate e aos poucos melhorando e avançando para que possa ser aprovado.” afirma Ventura.

https://futurodasaude.com.br/medicamentos-em-supermercados/

 

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