Eliane Cantanhêde, O Estado de S.Paulo
Enquanto o mundo vai chegando a cem mil mortos (cem mil!), a cloroquina vira o grande assunto nacional, dividindo opiniões de autoridades, médicos, estudiosos, pacientes e qualquer um que esteja acompanhando as notícias sobre a pandemia ao redor do mundo, sobretudo no Brasil: a dona Maria, o seu José, quem faz isolamento, quem não faz. Virou uma febre.
Então, aos fatos: desde que China e Estados Unidos passaram a falar publicamente no uso de cloroquina contra o coronavírus, isso entrou na pauta internacional e animou o Brasil. A primeira reação foi uma corrida às farmácias, esvaziando as prateleiras para quem tem malária, lúpus ou artrite e realmente precisa do medicamento. Até por isso a Anvisa decretou a exigência de receita médica. A compra ficou restrita, mas o debate disparou e cada um passou a ter suas próprias certezas. Um festival de achismos.
A cloroquina passou a ser associada a outros remédios para tentar salvar vidas de pacientes de covid-19 em estado crítico, depois para pessoas internadas e está perto de virar remedinho para gripezinhas e resfriadinhos, qualquer um toma. Não há, porém, trabalho científico e documento de órgão oficial de saúde atestando que ela efetivamente cura no caso de coronavírus. Como disse uma epidemiologista na TV, há muita suposição, nenhuma comprovação científica.
O governo está correto em garantir preventivamente estoques – até porque se trata de um medicamento muito barato – e a bola está, não com políticos, seja o presidente, governadores ou prefeitos, mas sim com os médicos. Cabe a eles determinar quem, quando e em que circunstâncias deve usar a cloroquina. E, se a pessoa sobreviver, é preciso comprovar se foi por causa desse remédio específico, já que são administradas diferentes substâncias.
Antes da comprovação científica, boa parte do Brasil, a começar do governo federal, aposta todas as suas fichas numa saída milagrosa: aplicação de cloroquina a torto e a direito. Todos os pacientes se curam alegremente, o número de mortos fica muito aquém das previsões, a pandemia se vai como por encanto e viveremos todos felizes para sempre. É um bom sonho, mas convém combinar com a realidade.
De acordo com a OMS e todos os países desenvolvidos – que se preveniram a tempo ou que tentam remediar após milhares de mortes – o ideal seria dividir essas fichas aí, tá ok? Investir sim nas pesquisas com a cloroquina e aplicação de plasma de curados, por exemplo, mas com prioridade para testes, leitos, adequação do sistema de saúde à emergência e para aquelas duas palavrinhas mágicas: isolamento social.
Quanto mais a realidade grita, mais as pessoas desfilam despudoradamente, sem máscaras e distância mínima, fechando olhos e ouvidos para o colapso à vista no sistema de saúde e acreditando que quem morre são os “outros”, não somos nós, nossos pais, avós, parceiros, entes queridos. Pois deveriam aprender com EUA, Itália e Espanha que, depois, não adianta chorar sobre o leite derramado – e sobre os corpos.
Ficar trancada em casa quatro semanas é chato, estranho, mas isso é o mínimo que cada um de nós tem de fazer para reduzir a contaminação de um vírus que vai se espalhando e chegando à pobreza, onde não há nem água e sabão, quanto mais álcool gel. Não dá para contar com cloroquina, é preciso agir contra o contágio.
O efeito da pandemia é terrível na economia mundial e de cada país. O Brasil não escapa disso. Mas, mais importante do que economia, empresas e empregos – que o Estado tenta proteger como pode –, o fundamental é salvar vidas. Esse é o dever, obrigação e compromisso número um dos governos e de todos nós. Isolamento, isolamento, isolamento! Enquanto seu lobo não vem e não há cura comprovada!
https://politica.estadao.com.br/noticias/geral,cloroquina-sim-ou-nao,70003266763
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