Por Notas & Informações
Está prevista para hoje a primeira sessão da Comissão de Anistia com a nova composição do colegiado, definida pelo governo Lula. O objetivo imediato é fazer a revisão dos processos avaliados nos últimos dois governos, especialmente no de Jair Bolsonaro, quando a grande maioria dos pedidos foi rejeitada. Entre 2019 e 2022, dos 4.285 processos julgados pela Comissão, 4.081 (95%) foram indeferidos, segundo levantamento do Ministério dos Direitos Humanos e Cidadania.
É fundamental realizar esse trabalho de revisão, uma vez que, no governo Bolsonaro, a Comissão de Anistia foi totalmente desvirtuada, com integrantes que rejeitavam a própria finalidade do colegiado. Basta ver que, para Jair Bolsonaro, as atrocidades da ditadura militar não deveriam ser indenizadas, e sim homenageadas.
De fato, o bolsonarismo distorce até mesmo as questões mais básicas. O trabalho da Comissão de Anistia não é a realização de uma política de governo, como se dependesse das idiossincrasias do governante de plantão. O colegiado vem cumprir uma política de Estado, definida na própria Constituição de 1988, que concedeu “anistia aos que, no período de 18 de setembro de 1946 até a data da promulgação da Constituição, foram atingidos, em decorrência de motivação exclusivamente política, por atos de exceção, institucionais ou complementares” e determinou a correspondente reparação econômica. É dever do Estado, portanto, indenizar todos aqueles que, por razões políticas, foram perseguidos pelo poder estatal.
Durante o governo de Fernando Henrique Cardoso, foi editada a Medida Provisória (MP) 65/2002, depois convertida pelo Congresso na Lei 10.559/2002, que regulamentou os direitos constitucionais dos anistiados políticos. A Comissão de Anistia, que entre seus membros conta com um representante do Ministério da Defesa e um das pessoas anistiadas, é fruto dessa regulamentação. Assim, quando desvirtua o funcionamento do colegiado, o governo descumpre a Constituição, ao negar efetividade a direitos previstos no texto constitucional.
A vinculação da Comissão de Anistia com a Constituição e com a Lei 10.559/2002 explicita que o trabalho do colegiado não tem natureza política, não devendo depender de orientações político-ideológicas. Trata-se de tarefa técnica, de análise das provas, para comprovar a alegada perseguição política, assessorando o Executivo federal na concessão das indenizações.
Em razão da necessária conformidade com a lei, a Comissão de Anistia não deve fazer criações interpretativas, seja para negar direitos, seja para estendê-los além do que o legislador previu. Por exemplo, o novo Regimento Interno da Comissão de Anistia, publicado em 23 de março, prevê a possibilidade de um requerimento coletivo de anistia política, criando uma “declaração de anistia política coletiva” para “associações, entidades da sociedade civil e sindicatos representantes de trabalhadores, estudantes, camponeses, povos indígenas, população LGBTQIA+, comunidades quilombolas e outros segmentos, grupos ou movimentos sociais que foram atingidos, em decorrência de motivação exclusivamente política, por atos de exceção, institucionais ou complementares”.
A Constituição e a Lei 10.559/2002 são inequívocas: os anistiados são pessoas físicas. A pretendida ampliação a coletivos, por meio de decreto, desrespeita o que o Congresso estabeleceu. Se o governo federal pretende indenizar associações e entidades, deve antes propor ao Poder Legislativo. A razão para tal exigência é cristalina: a Comissão de Anistia cumpre uma política de Estado, e não de governo. Alterar sua sistemática exige lei.
Outro aspecto que merece ser lembrado, especialmente depois de duas décadas de existência da Comissão de Anistia, é a necessidade de finalizar o trabalho de reparação dos anistiados políticos. O Estado tem o dever de analisar com presteza os casos pendentes, dando o devido encaminhamento. Eternizar essa tarefa, como se não tivesse fim, seria também uma forma de descumprir a Constituição.
https://www.estadao.com.br/opiniao/comissao-de-anistia-e-politica-de-estado/
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