Por Ademar Borges e Alaor Leite
Entre os múltiplos desafios jurídicos do tempo presente, um sobressai: como proteger o Estado de Direito dentro do Estado de Direito, sem desbordá-lo? Diante da escalada autoritária que culminou na intentona de 8 de janeiro de 2023, formou-se consenso em torno da imprescindibilidade do emprego de instrumentos jurídico-institucionais de democracia combativa. Ainda não há, porém, acordo sobre os limites da beligerância contra os inimigos internos da democracia.
É natural que o desafio de mobilizar os mecanismos de autodefesa da democracia, sem desrespeitar as leis e a Constituição, atravesse o debate político-jurídico atual. Contudo, preocupa-nos a defesa, por parcela do mundo jurídico e político, de um amplo e imediato criticismo sobre a atuação alegadamente excessiva do Poder Judiciário na defesa das instituições. Os alvos incluem os inquéritos dos “atos antidemocráticos” no Supremo Tribunal Federal (STF), os mecanismos de remoção de conteúdos ilícitos no período eleitoral criados pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE) e o megaprocesso relativo ao 8 de janeiro, movido pela Procuradoria-Geral da República (PGR). Tal censura, ainda que eventualmente animada por propósitos liberais, soa-nos contraproducente, limitada e prematura.
A crítica global à atuação combativa do Judiciário em defesa da democracia é contraproducente, pois inverte o destinatário preferencial do criticismo liberal em momentos de ruptura. A atenção deve estar, em primeira linha, no agressor. É ilógico o liberalismo que, ainda que indiretamente, normaliza a tentativa violenta de abolição do Estado de Direito, antes preferindo repreender quem evitou que a abolição se consumasse. Tal não significa desaconselhar todo criticismo à atuação judicial, mas, sim, propor uma régua para que essa crítica seja realista e compatível com a dimensão dos riscos produzidos pela vertiginosa escalada autoritária.
Dessa inversão resulta o caráter profundamente limitado desse tipo de formulação. Quem reclama implacável revisitação são os fatos que desaguaram no 8 de janeiro: adubados financeiramente, estimulados discursivamente ao longo de anos por homens de alta patente e garantidos por ação e omissão de forças de segurança. Tão forte quanto seja a potência imagética desses eventos, o tempo cuida de atenuar as fronteiras do razoável e nublar a visão. Por isso, há que fugir de toda visão de túnel: o 8 de janeiro não expressa pontual e ingênuo desespero de quem professa outra visão de mundo e se viu derrotado, mas cena derradeira de uma trama iliberal urdida meticulosamente e alardeada em versos de inequívoca explicitude (e ilicitude). É evidente que os crimes antecedem e extrapolam o 8 de janeiro; também a resposta judicial deve ser totalizante e atingir a cúpula. À crítica isolada ao megaprocesso de 8 de janeiro falta precisamente esse olhar total. A história nos ensina que não é prudente antecipar o armistício, desmobilizar o instrumental jurídico existente e deslegitimar as ações de legítima defesa institucional.
Por fim, a reclamação é prematura. Os fatos que se precipitaram no “dia da infâmia” ainda não esgotaram as suas consequências no plano jurídico. Não se cuidava de contingente disputa eleitoral, mas de frontal desafio ao projeto constitucional brasileiro, a que o mundo teve acesso, no mais tardar, na constrangedora reunião dos embaixadores, em julho de 2022. A derrota nas urnas nada encerra, antes tudo acirra: o projeto constitucional segue em xeque. A resposta deve ser, portanto, jurídica, e não apenas político-eleitoral. O escrutínio desses fatos, já vertidos em processos criminais e eleitorais, deve convocar sanção jurídica justa, ágil e proporcional. Não fosse suficiente, esse criticismo apressado acaba por flertar com renovada indulgência histórica em face de crimes cometidos no exercício do poder.
A sanção jurídica é a justa resposta das democracias combativas – que permitem muito, mas não perdoam tudo. Entre nós, a sanção é condição de possibilidade para todo o resto. Cumpre-nos punir os responsáveis nos termos da lei, seja para aprisionar o passado ao passado, seja para pavimentar o futuro. Não a desmesura do ódio nem a arrogância imprevidente do esquecimento, mas a sanção simplesmente, em sua pedagógica objetividade. A primeira infância constitucional fez-nos crer na falsa oposição entre perdão e vingança. Entre o perdão e a vingança há, contudo, a sanção proporcional, essa filha madura das democracias. Haverá tempo para a mais ampla historiografia do tempo recente, findos os processos e sancionados os responsáveis. Será, então, possível construir um sistema jurídico-institucional de proteção à democracia, com limites bem traçados e com nítida divisão de tarefas institucionais.
O porvir reserva-nos enormes desafios, quase todos de atribuição do Parlamento: revisão dos crimes contra o Estado de Direito e dos ilícitos eleitorais, reflexão sobre um serviço de inteligência de natureza civil e regulação das redes sociais. Antes, porém, a sanção.
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SÃO, RESPECTIVAMENTE, PROFESSOR DE DIREITO CONSTITUCIONAL DO INSTITUTO BRASILEIRO DE ENSINO, DESENVOLVIMENTO E PESQUISA (IDP), DOUTOR EM DIREITO PÚBLICO (UERJ); E PROFESSOR DA FACULDADE DE DIREITO DA UNIVERSIDADE DE LISBOA (FDUL), DOUTOR PELA UNIVERSIDADE DE MUNIQUE (LMU)
https://www.estadao.com.br/opiniao/entre-o-perdao-e-a-vinganca-a-sancao
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