09 de outubro, 2024

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Formulação racional de políticas públicas

Foto: Marcos Santos/USP Imagens

Notas & Informações, O Estado de S.Paulo

Em 1999, um artigo publicado pelo governo do Reino Unido (Modernizando o Estado) notava que o governo deve “produzir políticas que realmente lidem com os problemas, que olhem para frente e sejam moldadas por evidências, em vez de uma resposta a pressões de curto prazo”, ou seja, políticas “que enfrentem as causas, não os sintomas”. Foi uma das primeiras articulações do conceito de “políticas públicas baseadas em evidências”: a ideia de que decisões políticas devem ser informadas por dados objetivos, em contraste com decisões baseadas em ideologias, “senso comum” e intuições.

É a tradução para a política da “medicina baseada em evidências”, em que decisões clínicas são apoiadas em indicadores de eficiência extraídos de pesquisas e testes randomizados controlados. Duas iniciativas recentes na área de segurança exemplificam como esse conceito pode ser aplicado na gestão pública.

Uma é o Indicador de eficiência de operações policiais, criado pelo Grupo de Estudos dos Novos Ilegalismos, da Universidade Federal Fluminense, com base em três parâmetros: o impacto aos envolvidos (número de mortos, feridos e presos); quantidade de ilícitos apreendidos (armas, drogas, contrabando); e as motivações das ações (se têm respaldo e autorização judicial). Tais critérios podem ser, por óbvio, questionados, mas são claros e verificáveis. A outra iniciativa é um convênio do Estado de São Paulo com a USP e a FGV para medir o impacto das câmeras corporais em PMs. O projeto durará cinco anos e envolve a criação de ferramentas de inteligência artificial que auxiliem na tomada de decisões na área de segurança.

São técnicas para diagnosticar problemas e implementar terapias. Mas a analogia entre a medicina e a política tem limites. Os críticos alertam para os riscos da “tecnocracia”, em que as decisões seriam tomadas por especialistas, em contraste com a democracia representativa, em que as decisões são tomadas pelos representantes eleitos. É uma falsa dicotomia. O exercício do poder democrático só é possível quando todos os cidadãos se sentem participantes e, para isso, devem ter as melhores informações técnicas disponíveis.

Os fins devem ser os resultados que os cidadãos querem. Os especialistas oferecem os meios comprovadamente eficazes. E os representantes eleitos, enquanto guardiões do interesse comum, os implementam de acordo com uma escala de prioridades, custos e benefícios.

As distorções ocorrem por húbris de uma das partes. Os populistas alegam que estão apenas implementando a vontade do povo e acusam qualquer oposição de antidemocrática. Os tecnocratas alegam que só se curvam às necessidades e toda oposição é irracional.

O debate eleitoral no Brasil ilustra particularmente os riscos do populismo. A polarização ideológica devora a lógica e a empiria. A essência de uma política saudável, o senso de que os cidadãos têm escolhas, que elas devem ser baseadas em evidências e que os políticos devem assumir a responsabilidade por suas decisões, é sufocada por um fatalismo que quebra a organicidade das políticas públicas.

Um bom sistema penal, por exemplo, resguarda a segurança da sociedade e compensa os ofendidos, com punições ao ofensor, e, ao mesmo tempo, garante os direitos do ofensor e promove a sua ressocialização. Nas mãos dos demagogos, esses fins são antagonizados, como se só houvesse uma escolha entre políticas preventivas ou repressivas, entre o “garantismo” ou o “punitivismo”. Os partidários de cada campo – lutando pelo “bem” – se dispensam de apresentar evidências que demonstrem a eficácia de suas políticas e obliteram ad limine as evidências apresentadas pelo outro – o “mal”.

Quebrar essa lógica depende de os cidadãos revigorarem o seu senso de participação e escolha. Depende também da valorização do arcabouço instrumental que possibilita qualificar o Estado. Há muitas pessoas e instituições produzindo evidências nesse sentido. Há projetos, há tecnologias e há lideranças dispostas a aproveitar esse potencial. Mas, para que isso aconteça, será necessário desintoxicar o debate político, direcionando-o para o que importa: não uma disputa entre o “bem” e o “mal”, mas sim entre aquilo que funciona e o que não funciona.

 

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