Eliane Cantanhêde, O Estado de S. Paulo
Que a reforma administrativa é absolutamente fundamental para reduzir gastos e garantir eficiência, qualidade e produtividade no serviço público, ninguém tem dúvida e isso fica ainda mais flagrante diante do impacto dramático da pandemia nas empresas e empregos do setor privado e nas contas da União, Estados e Municípios. Mas que reforma? Para quem? Com que abrangência? Em que prazo?
Engavetada por dez longuíssimos meses pelo presidente Jair Bolsonaro, que pensa mais na reeleição do que na Presidência, a reforma tardou, é preciso saber se não falhou. E ainda tem muito chão pela frente. Assim como Bolsonaro pressiona por cima, as poderosas corporações públicas pressionam por baixo para manter tudo como está. Quem tem de resistir é o Congresso Nacional – que é parte interessada.
A maior crítica à proposta (inclusive no Ministério da Economia) é não atingir os atuais, só os futuros servidores. Mas a reação é favorável, por atacar privilégios incompreensíveis: promoção por tempo de serviço, licença-prêmio, acúmulo de salários, aposentadoria compulsória como punição e a principal delas, a estabilidade. Os servidores têm o “direito adquirido” de manter o emprego, o que é injusto com os péssimos, com os ótimos e com quem paga: nós todos. E um estímulo à ineficiência.
A proposta faz distinção entre “servidores” e “agentes” públicos. Atinge os servidores dos três poderes, Executivo, Legislativo e Judiciário, e dos três níveis federativos, União, Estados e Municípios, mantendo a estabilidade para carreiras de Estado, como diplomatas, auditores fiscais, policiais federais e também militares, que têm regime diferenciado de trabalho, como de Previdência.
Para os futuros servidores “sem-estabilidade”, não bastará um concurso para garantir salário e renda pelo resto da vida. Será preciso mostrar trabalho desde o início, com estágio comprobatório de três anos, e quem apresentar “desempenho insuficiente” correrá risco. Neste ponto, porém, haverá intensas discussões sobre o perigo de “triagem político-ideológica” dos jovens servidores pelos governos de plantão. Vai que alguém goste de rock e o chefe ache o rock “demoníaco”. Nunca se sabe…
Já os agentes públicos, não servidores, ficam de fora: deputados, senadores, magistrados, procuradores, promotores e ministros de tribunais, já que o Executivo não pode determinar a organização e as regras para Legislativo e Judiciário, onde se concentram caríssimos “penduricalhos” que eu, tu e nós pagamos. Como férias de 60 dias.
Além disso, há muitas dúvidas quanto a estabelecer que o céu é o limite para o presidente da República criar, acabar e remanejar órgãos públicos, sem aval do Congresso. Se, com as atuais restrições, o presidente já pode fechar o Ministério da Cultura, por exemplo, imaginem com um super poder para moldar a administração federal ao seu gosto ideológico?
Todas essas questões deixam de gerar embates entre Bolsonaro e o ex-super ministro Paulo Guedes e caem no colo de deputados e senadores, que formarão uma comissão conjunta para estudar a proposta, tirar uns exageros e acrescentar outros, cobrir vácuos e criar outros. Diferentemente do governo, eles trabalharão sob intensa pressão da opinião pública, do setor privado e de corporações que têm apoio da esquerda e da direita. Sem falar nos eleitores….
Assim como Bolsonaro, parlamentares só pensam em eleição e, entre o interesse público e os seus votos, nem sempre o vitorioso é o interesse público. Tão impopular quanto necessária, a reforma administrativa depende da ampliação do debate para além das corporações e do convencimento da sociedade de que, como a da Previdência, ela é essencial para o País.
Comentários