Notas&Informações, O Estado de S.Paulo
Em 1988, o País restabeleceu, por meio da Constituição, a liberdade de expressão, de imprensa e de opinião. A censura da ditadura militar – definindo o que podia e o que não podia ser publicado, exposto ou escrito – ficava, assim, definitivamente extinta. Para impedir eventuais retrocessos no futuro, inseriu-se no texto constitucional uma cláusula pétrea sobre o tema: “Não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir os direitos e garantias individuais”.
Dessa forma, no Estado brasileiro, sempre será “livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato” (art. 5.º, IV), como sempre será “livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença” (art. 5.º, IX). A garantia dessas liberdades de forma permanente é fonte de paz e tranquilidade. Que cada um possa se expressar, comunicando aos outros o que acredita, é aspiração humana fundamental: é parte essencial da dignidade humana, é elemento necessário do regime democrático.
Mas, justamente para que todos possam exercer suas liberdades fundamentais, a liberdade de expressão não é uma autorização para dizer impunemente o que bem entender. Há limites. A Constituição assegura, por exemplo, que “são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas” – ou seja, a liberdade de expressão não dá direito a ofender. Por isso, o Código Penal prevê os crimes de calúnia, injúria e difamação. Todos têm direito a expressar sua opinião política, mas ninguém tem direito a caluniar, injuriar ou difamar quem quer que seja.
Outros exemplos de crimes previstos na lei penal envolvendo a comunicação são a injúria racial, a incitação ao crime, a comunicação falsa de crime e o ultraje ao culto religioso. Nada disso significa reduzir a liberdade de expressão. É antes o reconhecimento de que a palavra é importante e produz efeitos.
Todo esse arcabouço jurídico sobre a liberdade de expressão – suas garantias, seus limites e suas consequências – vem sofrendo um intenso e, em certa medida, inédito ataque nos últimos anos. A ameaça não é fruto de tentativas de emenda constitucional, inviáveis de prosperar em função da cláusula pétrea. O ataque é mais sutil e mais perigoso. Ele decorre de uma compreensão equivocada da ideia de liberdade de expressão, como se a palavra fosse território sem lei, isto é, como se houvesse um direito a falar o que bem entender, em um contexto de irrestrita irresponsabilidade.
O quadro atual é desafiador. Essa compreensão equivocada da liberdade de expressão não está mais restrita a pequenos grupos extremistas. Ela se difundiu. Fez-se cultura. A própria expansão da internet e das redes sociais, com a oferta de novos espaços de expressão, gerando novas percepções de liberdade, contribuiu para reforçar a ideia de que a palavra estaria imune não apenas a um controle prévio, mas à própria lei.
Tudo isso foi intensificado por Jair Bolsonaro ao longo de seus quatro anos na Presidência da República, ao transformar essa equivocada compreensão da liberdade de expressão em bandeira eleitoral. Não haveria limites, tampouco parâmetros objetivos. Sob o pretexto de liberdade, estaria assegurada ampla impunidade. Inúmeros, os exemplos envolvem desde negação de dados científicos e insinuações criminosas contra inimigos políticos até desinformação contra o regime democrático e o sistema de votação.
Agora, o País tem pela frente o desafio de resgatar a liberdade de expressão em sua dimensão de garantia e direito de todos. Ela não é instrumento de ataque de alguns que se acham mais espertos ou violentos. Nessa tarefa de recompor a noção e o exercício dessa garantia fundamental, o Poder Judiciário tem um papel especial, seja para evitar a impunidade de quem cometeu crimes, seja para ater-se aos limites de sua jurisdição – sempre lembrando que ao Estado não cabe organizar o debate público ou ser árbitro das ideias presentes numa sociedade. A liberdade de expressão é para valer, sem exceções.
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