Nicolau da Rocha Cavalcanti, O Estado de S.Paulo
Neste ano, a campanha eleitoral de Jair Bolsonaro apresentou Luiz Inácio Lula da Silva como inimigo da religião. Segundo esse discurso, a eleição do candidato do PT à Presidência da República colocaria em risco a liberdade religiosa no País.
Utilizar o tema na campanha foi arriscado. Se existe um assunto em que Lula tem um histórico muito positivo, ele é justamente a defesa da liberdade religiosa. Pelo visto, Jair Bolsonaro apostou na ignorância de seu eleitor em relação aos fatos ocorridos no segundo mandato de Lula.
Em 13 de novembro de 2008, sob a presidência de Lula, o Brasil firmou com a Santa Sé o acordo relativo ao Estatuto Jurídico da Igreja Católica no Brasil. No ano seguinte, o Congresso aprovou o tratado e, em 2010, o presidente Lula editou o Decreto n.º 7.107/2010 promulgando o Acordo Brasil-Santa Sé. Trata-se de um tema difícil e complicado, cheio de percalços e ressentimentos históricos. Eventual incompreensão sobre o assunto poderia gerar alto custo político para o presidente da República. No entanto, de forma corajosa, Lula assumiu o risco e fez com que o Acordo Brasil-Santa Sé fosse assinado e aprovado. Em todo o mandato de Jair Bolsonaro, não houve nenhum ato do governo federal em favor da liberdade religiosa tão arriscado politicamente. Sempre que Bolsonaro falou de religião foi em benefício político próprio.
O Acordo Brasil-Santa Sé, que, entre outros pontos, protege o ensino religioso facultativo, é um tratado sofisticado juridicamente, que respeita o caráter laico do Estado brasileiro. O texto não concede tratamento privilegiado à Igreja Católica, nem muito menos atribui status de verdade à sua doutrina. Afinal, o Estado laico é incompetente para se manifestar sobre temas religiosos. O Acordo Brasil-Santa Sé apenas concretiza no âmbito católico o conteúdo das disposições constitucionais sobre a liberdade religiosa.
Sem entrar em questões religiosas, o Acordo Brasil-Santa Sé reconhece que, para o exercício da liberdade religiosa, é preciso haver uma proteção jurídica das igrejas. Reafirma-se, no artigo 3.º, “a personalidade jurídica da Igreja Católica e de todas as instituições eclesiásticas (…), desde que não contrarie o sistema constitucional e as leis brasileiras”.
No artigo 7.º, o Brasil compromete-se a adotar, segundo seu ordenamento jurídico, “as medidas necessárias para garantir a proteção dos lugares de culto da Igreja Católica e de suas liturgias, símbolos, imagens e objetos cultuais, contra toda forma de violação, desrespeito e uso ilegítimo”. Bastaria a leitura desse artigo, assinado enquanto Lula era chefe de Estado, para pôr por terra as acusações de Bolsonaro de que o candidato petista teria a pretensão de perseguir a prática religiosa no País.
O Acordo Brasil-Santa Sé aborda, com grande respeito à natureza específica do fenômeno religioso, um dos aspectos mais sensíveis (também do ponto de vista financeiro) do funcionamento das igrejas. O tratado reconhece que “o vínculo entre os ministros ordenados ou fiéis consagrados mediante votos e as dioceses ou institutos religiosos e equiparados é de caráter religioso e, portanto, observado o disposto na legislação trabalhista brasileira, não gera, por si mesmo, vínculo empregatício, a não ser que seja provado o desvirtuamento da instituição eclesiástica”. Com esse artigo, Lula e o Congresso Nacional, que depois aprovou o acordo, proporcionaram segurança jurídica para a operação das igrejas e, consequentemente, para a vivência religiosa.
Na sessão legislativa em que a Câmara aprovou o Acordo Brasil-Santa Sé, foi também aprovado um projeto de lei aplicando disposições similares às do tratado a todas as religiões. Depois, a proposta de uma Lei Geral das Religiões foi arquivada no Senado, onde era relator o então senador Marcelo Crivella.
Tudo isso foi realizado num governo do PT, que, segundo Bolsonaro, perseguia igrejas. Relembrar esses episódios ajuda a mostrar como é fácil, em campanha eleitoral, distorcer a realidade. Mas a questão é mais profunda. O uso da religião nas eleições é apenas a ponta de um processo maior – operado pelo que se convencionou chamar de “extrema direita” – de reenquadramento (reframing) da esquerda em chave moral, e não política. O elemento constitutivo da esquerda seria o “discurso desviante” dos intelectuais, dos artistas, das universidades, dos organismos internacionais. Sob esse enfoque, resistir à esquerda deixa de ser simples escolha política, para se tornar um imperativo moral-religioso de defender o que intitulam ser o “Brasil profundo”, uma peculiar imagem de país construída a partir de suas próprias referências e preferências. Como se vê, trata-se também de um processo de exclusão do outro e de sua cidadania: quem pensa diferente torna-se menos brasileiro, menos patriota.
É urgente qualificar o debate público. A política não pode ser uma arena de pânico, e sim diálogo de razões públicas. É legítimo fazer oposição a Lula, mas dizer que ele persegue as religiões é descumprir o 8.º mandamento da lei de Deus.
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ADVOGADO
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