A Segunda Turma do Tribunal Superior do Trabalho rejeitou o exame do recurso de um empresário iraniano contra condenação por manter um imigrante de seu país em condições degradantes de trabalho em São Paulo. A relatora, ministra Liana Chaib, aplicou ao caso dois dos três protocolos adotados recentemente pela Justiça do Trabalho: o Protocolo para Atuação e Julgamento com Perspectiva Antidiscriminatória, Interseccional e Inclusiva e o Protocolo para Atuação e Julgamento com Perspectiva de Enfrentamento do Trabalho Escravo Contemporâneo.
Jornada exaustiva e passaporte retido
O imigrante, formado em engenharia civil, disse na reclamação trabalhista que foi agenciado em seu país em novembro de 2017, mediante uma série de promessas. Depois de chegar, trabalhou em frigoríficos e numa loja de tapetes do empresário. Os frigoríficos atendiam ao mercado internacional e adotavam o método Halal, em que o abate de animais segue os preceitos do islamismo.
Durante esse período, sua remuneração era incerta e irrisória. Isso, juntamente com o fato de seu passaporte estar com o empregador, o impedia de voltar a seu país. Além disso, sua situação era irregular, porque seu visto era apenas de turismo.
Segundo ele, em todos os locais em que trabalhou, as acomodações eram precárias: tinha de dormir no chão, não havia geladeira ou fogão e a manutenção e a limpeza eram praticamente inexistentes. A jornada no frigorífico ia das 4h às 17h, e, nos demais locais, era de 12h ou mais por dia.
Em 2020, ao ser desligado, ele não tinha documentos para permanecer e trabalhar no Brasil e apenas um cheque do empresário para ser sacado no Irã. Na ação, ele pedia o pagamento de todas as parcelas salariais devidas e indenização por danos morais.
A Vara do Trabalho de Jales (SP) teve de nomear um intérprete de língua persa para acompanhar as audiências, porque ele não falava português.
Empresas negaram relação de emprego
Em sua defesa, o empresário alegou que o trabalhador foi contratado no Irã por uma empresa iraniana e enviado ao Brasil como supervisor, a fim de certificar o cumprimento do método Halal. Esse processo era conduzido por um sheik, e a equipe contava com outros trabalhadores, todos iranianos, subordinados a ele. Assim, toda a responsabilidade, inclusive pela moradia, seria da empresa estrangeira, e ele não sabia se o trabalhador recebia algum tipo de remuneração. O mesmo argumento foi apresentado pelas pessoas jurídicas envolvidas.
Imigrante era vulnerável à exploração
O juízo da Vara do Trabalho de Jales (SP) reconheceu o vínculo de emprego e condenou as empresas ao pagamento de todas as parcelas devidas. Concluiu, ainda, que o trabalhador, durante todo o período, recebeu em média R$ 150 mensais e deferiu as diferenças em relação ao salário mínimo vigente em cada período. A sentença também reconheceu que houve dano moral e fixou a indenização em R$ 20 mil.
Esse valor foi aumentado pelo Tribunal Regional do Trabalho da 15ª Região para R$ 100 mil, diante da gravidade da situação. O TRT assinalou que o fato de o trabalhador ter sido trazido de outro país, com cultura e língua totalmente diferentes, reduz sua liberdade de se desvincular do empregador e o torna vulnerável à exploração e ao trabalho forçado.
Para relatora, caso é de trabalho análogo à escravidão
No exame do agravo pelo qual o empresário tentava rediscutir o caso no TST, a ministra Liana Chaib, observou que o Pacto de São José da Costa Rica (ou Convenção Americana sobre Direitos Humanos), incorporado à legislação brasileira em 1992, proíbe a escravidão e o tráfico de pessoas para esse fim, assim como diversas normas nacionais e internacionais. Por sua vez, o Código Penal brasileiro criminaliza a prática, que envolve aspectos como submissão a trabalhos forçados ou a jornada exaustiva, condições degradantes de trabalho e restrição de locomoção.
Na avaliação da ministra, o caso ainda se enquadra em outro ponto do Código Penal, que trata dos crimes contra a organização do trabalho. “Está tipificado como crime o ato de ‘frustrar, mediante fraude ou violência, direito assegurado pela legislação do trabalho’”, explicou. “Ao chegar ao Brasil, o trabalhador foi submetido a jornadas muito superiores às oito horas diárias previstas na Constituição da República e com remuneração ínfima, incapaz de suprir as necessidades básicas de um adulto”, afirmou. “Todos os direitos trabalhistas constitucionalmente previstos foram violados no caso concreto, que se caracteriza como análogo à escravidão”.
Camadas de opressão devem ser consideradas
Para a relatora, não reconhecer essa relação de trabalho implicaria negar a própria centralidade do trabalho, “evidente de forma direta no caso de um imigrante, que alterou seu país de residência por uma questão de sobrevivência, que é retirada do trabalho remunerado”. Essas circunstâncias demonstram as camadas de vulnerabilidade a que o trabalhador estava exposto. “O caráter interseccional dessas opressões precisa ser considerado para fins de indenização”, ressaltou.
Em relação ao valor da condenação, a ministra concluiu que o valor majorado pelo TRT atendeu aos parâmetros da razoabilidade e da proporcionalidade. “A Indenização por danos morais no valor de R$ 100 mil em razão dessa odiosa prática é necessária para evitar a banalização da injustiça social”, afirmou.
Por fim, a relatora lembrou que, para alterar a decisão do TRT, seria necessário reexaminar fatos e provas, procedimento inviável em recurso de revista.
A decisão foi unânime.
Processo: AIRR-0010798-97.2021.5.15.0080
Fonte: Tribunal Superior do Trabalho, por Carmem Feijó, 27.09.2024
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