Em meio às enchentes que deixaram mais de 400 municípios gaúchos em estado de calamidade pública e em situação de emergência, o Ministério Público do Trabalho no Rio Grande do Sul (MPT-RS) recebeu denúncias de abuso de poder diretivo por parte do Zaffari contra seus funcionários.
O Zaffari é uma das maiores redes de supermercados do sul do país, com cerca de 12 mil funcionários em seu quadro de empregados. À Matinal, o MPT confirmou que “os fatos estão sob investigação”, ainda em estágio inicial.
Os casos de abuso de poder diretivo podem envolver ameaças de punições ou demissões, assim como quando um funcionário é submetido a uma situação de perigo para sua integridade física sem justificativa. A violação ocorre quando o empregador ultrapassa os limites impostos pela legislação – seja por normas coletivas, contrato de trabalho ou pela boa-fé.
“No caso da calamidade pública, boa parte das denúncias se refere a situações em que o trabalhador foi convocado para retornar ao trabalho, mas havia sido atingido diretamente pelas enchentes ou com impossibilidade de deslocamentos”, explica a assessoria do MPT, sem fornecer detalhes sobre o caso específico que envolve o supermercado.
À Matinal, uma funcionária do Zaffari relatou desconhecer demissões por parte da empresa neste momento de crise, mas afirmou que atrasos relacionados às enchentes precisariam ser recuperados, conforme norma interna. A funcionária do supermercado, que preferiu não ser identificada, trabalha em uma unidade de Porto Alegre – a capital está em situação de calamidade pública desde 2 de maio, em razão das inundações que alagaram diversos bairros do município e afetaram mais de 157 mil pessoas.
Questionada pela reportagem, a assessoria de imprensa do Zaffari confirmou o recebimento da notificação do MPT-RS e argumentou que “todas as suas ações foram pautadas pela legalidade e pelo respeito aos direitos de seus colaboradores.” A empresa negou demissões ou descontos de salários nesse período. Em relação a atrasos de funcionários que tiveram dificuldades de deslocamento, informou que “dinâmicas excepcionais de frequência serão avaliadas posteriormente”. A assessoria não soube informar quantos funcionários foram desalojados ou tiveram afetadas as condições de deslocamento, mas informou que “estes dados ainda estão em levantamento”.
O retorno ao trabalho
As acusações ao Zaffari vêm à tona junto a discussões sobre o retorno das atividades de trabalhadores atingidos pelo avanço das águas em todo o estado. A demanda gerada em função da atual crise levou o Ministério Público do Trabalho a montar, em 9 de maio, uma equipe especial para analisar e monitorar questões trabalhistas especificamente decorrentes das enchentes.
O grupo do MPT publicou duas recomendações voltadas aos empregadores do estado. Uma delas orienta que sejam tomadas medidas alternativas para a prestação de serviço, como trabalho remoto, antecipação de férias individuais, concessão de férias coletivas e adoção de banco de horas, para preservar o emprego e a renda dos trabalhadores – assim como prevê a lei 14.437/2022 – promulgada durante a pandemia de covid-19. A outra orientação é referente à saúde e à segurança dos funcionários durante limpeza e reconstrução nos locais afetados por inundações.
Atestados são emitidos sem data de validade
Com a criação da equipe focada no assunto, o MPT fez uma recomendação direta aos municípios gaúchos: que disponibilizem atestados comprovando que os moradores foram atingidos pelas enchentes e, por isso, não puderam comparecer ao trabalho.
Em 11 de maio, a Defesa Civil de Porto Alegre permitiu que as cidades emitissem o documento para pessoas impactadas. Os atestados são vinculados aos endereços dos solicitantes, incluindo informações de mobilidade para aqueles que não conseguiriam trabalhar em outro município. Porém, o documento não indica nenhum prazo de validade.
De acordo com o órgão municipal, os cidadãos que precisam do atestado foram afetados de formas diferentes, por isso o tempo que necessitam para voltar ao trabalho varia.
A Matinal conversou com uma bibliotecária residente de Gravataí que tenta estender o prazo de 15 dias atribuído pela empresa em que trabalha. No seu caso, o documento foi expedido pela prefeitura da cidade onde vive. Funcionária de uma empresa localizada em Porto Alegre, ela alega que não tem condições financeiras para arcar com o custo adicional de transporte, que foi dificultado pelos alagamentos.
“Quero conversar com a minha supervisora, ver se isso é uma política da empresa, pois ela ainda não me respondeu. E ainda que seja, seguirei questionando pois não irei compensar essas horas e espero que ninguém precise compensar também”, relata a bibliotecária, que conhece outros trabalhadores na mesma situação, que tentam garantir uma validade maior ao documento.
Trabalhador conta com bom senso das empresas
Para o advogado Jefferson Alves, especialista em Relações de Trabalho pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), o documento não deve ser a única forma de abonar as faltas dos trabalhadores. “Apesar da legislação trabalhista não prever o abono de faltas em situações de calamidade, aqui deve prevalecer o bom senso das empresas”, afirma.
Jefferson ressalta que os empregadores não podem criar regras e estabelecer normas para a comprovação de abono pelo empregado. Por essa lógica, o empregador não poderia estabelecer um prazo de validade para o atestado emitido por um município em uma situação de calamidade – como ocorreu no caso da bibliotecária de Gravataí.
A Matinal questionou a Defesa Civil Municipal sobre possíveis prazos dados a trabalhadores que emitiram o atestado, que respondeu: “pelas CLT os atestados têm essa duração [15 dias] para não entrarem no INSS, mas estamos verificando como serão tratados esses casos de calamidade pelo TRT. Se necessário, será emitido com prazo”, comunicou a assessoria do órgão.
A orientação é que os trabalhadores demitidos, por justa causa ou sem, acionem a Justiça do Trabalho. “Houve situações em que as empresas foram impedidas de realizar a demissão no período de calamidade pública, exatamente porque é o período em que o trabalhador mais está vulnerável”, completa Jefferson.
Além disso, a situação do estado se enquadra como fato público notório, isto é, fato de conhecimento geral – que também deve ser levado em consideração pelas empresas. “Elas não podem realizar descontos da jornada de trabalho não realizada porque é uma situação excepcional e o artigo 501 da CLT traz a situação de força maior como uma das possibilidades”, explica.
Apesar disso, a recomendação é que os trabalhadores afetados solicitem o atestado ao município. Em ocorrência de demissão por justa causa com base nas faltas do empregado neste período, Jefferson destaca que a dispensa poderá ser revertida judicialmente, a partir da apresentação de provas.
“É importante que o trabalhador afetado obtenha o atestado da Defesa Civil como uma prova adicional e também se municie com reportagens de jornais, principalmente jornais locais, com fotos, materiais jornalísticos, todo tipo de prova física, que poderá ser apresentada posteriormente”, diz o advogado.
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