Qualquer família que tenha reformado sua casa já enfrentou o drama: por um lado, há consenso sobre a necessidade de reformas; por outro, dissenso sobre as prioridades, o projeto de cada uma e seus custos. Na Casa Comum brasileira não é diferente.
Há, primeiro, o desafio de compatibilizar os direitos cimentados na Constituição com mecanismos de sustentação. Desde 1988 os gastos públicos escalaram. No entanto, o Brasil ainda é um dos países mais desiguais do mundo e há décadas a renda e a produtividade deixaram de se aproximar das dos países desenvolvidos.
Sob esse desafio jaz um ainda maior: erradicar vícios de origem herdados desde a era colonial, que podem ser resumidos em uma palavra: “patrimonialismo” – a vasta e intrincada rede de privilégios corporativistas, tanto do setor público quanto do privado.
Há tempos vigora um consenso sobre um tripé de reformas. A importância de uma reforma política é evidente pela crise de representatividade que só se aprofundou desde 2013. Uma reforma administrativa que elimine privilégios, sintonize as condições de trabalho do setor público ao privado, estabeleça uma melhor governança e valorize os bons servidores é indispensável para um Estado moderno e eficiente. Por fim, é preciso sanar um sistema tributário caótico e altamente regressivo.
Como destacou uma reportagem do Estadão para a série de 15 perguntas ao novo presidente, a conjuntura brasileira e os novos paradigmas globais acrescentaram novos itens a esse rol: uma reforma social para combater o avanço da miséria; o reajuste das regras orçamentárias para restabelecer o controle e a fiscalização dos gastos; e um arcabouço regulatório favorável ao desenvolvimento da economia verde.
Algo da propalada “impopularidade” das reformas decorre da dificuldade de adequar os ideais consagrados pela Constituição à realidade de um Orçamento limitado. Mas justamente por isso essas reformas são necessárias: elas são interdependentes e são, antes de tudo, uma questão de justiça social e de desenvolvimento sustentável. Mas muito da impopularidade é falso: nada além da pressão de enclaves corporativistas e clientelistas. Que a dita “vontade política” é indispensável provam-no as reformas fiscal e monetária, capitaneadas por FHC, ou a trabalhista, por Michel Temer.
A situação, é preciso dizer, é desalentadora. Não bastasse a procrastinação das velhas reformas, somada à premência das novas, o próprio consenso sobre a sua necessidade está em xeque. A indiferença dos dois favoritos à Presidência é indisfarçável. Ambos encontraram no medo um do outro uma alavanca eleitoral e um álibi para fugir do debate reformista.
Nessa atmosfera asfixiante, o cuidado do eleitor com o voto nos demais representantes eleitos é importante como nunca. Nos últimos anos, muitos governadores construíram consensos para aprovar reformas. Mesmo com o estelionato eleitoral de Jair Bolsonaro, a vontade de mudança do eleitorado, canalizada por uma presidência da Câmara engajada, à época de Rodrigo Maia, fez com que o Congresso consumasse reformas encaminhadas por Michel Temer, como a da Previdência ou a do marco do saneamento. E não faltam propostas bem amadurecidas e arquitetadas de instituições da sociedade civil cada vez mais empenhadas em modernizar o Estado.
Os brasileiros insatisfeitos com a demagogia antirreformista do lulopetismo e do bolsonarismo não podem esmorecer. Há outros candidatos. Mas, mesmo que suas chances sejam escassas, há postulantes ao Senado, à Câmara, aos governos e assembleias estaduais comprometidos com as reformas. As eleições são o momento de prestigiá-los e lançar as bases de uma oposição consistente.
Quando não se pode contar com a vontade política de cima, do Planalto, é preciso que ela venha de baixo, da sociedade e seus demais representantes. Sem dúvida ela é difícil. Exige a articulação de consensos e o seu corolário, a disposição a sacrifícios e renúncias. Mas, se essa mobilização genuinamente popular for lograda, sua pressão pode ser irresistível e as mudanças, radicalmente regeneradoras.
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