Por Ricardo Calcini e Leandro Bocchi de Moraes
Na semana passada, o ministro Gilmar Mendes, integrante do Supremo Tribunal Federal, determinou o cancelamento da suspensão nacional dos processos que tinham por objetivo discutir a temática da prevalência do negociado sobre o legislado [1]. Segundo dados do Conselho Nacional de Justiça, ao menos 50.346 processos estavam suspensos [2], de sorte que com essa deliberação formal os processos devem retornar a sua tramitação normal, sob a orientação da maior instância do Poder Judiciário.
Dito isso, é forçoso lembrar que o leading case que originou tal suspensão foi a controvérsia envolvendo o tempo gasto pelo trabalhador no deslocamento entre a sua residência e o trabalho e vice-versa, conhecida como horas intinere [3], instituto jurídico que, aliás, foi suprimido da Consolidação das Leis do Trabalho após o advento da Lei 13.467/2017.
Em seu recente despacho, ao cancelar formalmente a suspensão nacional dos processos trabalhistas, o ministro assim asseverou [4]:
“Verifico que, em 28 de junho de 2019, determinei a suspensão nacional de todos os feitos que versavam sobre o tema 1.046, com base no art. 1.035, § 5º, do CPC.
Com o julgamento de mérito do presente recurso, foi fixada a seguinte tese: ‘São constitucionais os acordos e as convenções coletivas que, ao considerarem a adequação setorial negociada, pactuam limitações ou afastamentos de direitos trabalhistas, independentemente da explicitação especificada de vantagens compensatórias, desde que respeitados os direitos absolutamente indisponíveis’.
Assim, desde o julgamento de mérito, não mais persiste a suspensão nacional dos processos relacionados ao Tema 1.046”.
Ora, desde junho de 2019 todas as reclamatórias que versavam sobre essa temática estavam suspensas, controvérsia que teve um ponto final em 2/6/2022, quando o STF deu provimento ao agravo em recurso extraordinário (ARE 1.121.633).
Entrementes, impende destacar que, quando do julgamento pela Suprema Corte, a discussão tinha por objetivo à época conferir prioridade à negociação coletiva, e, por corolário lógico, reconhecer e validar a sua natureza constitucional. O Plenário do STF, assim, acatou o voto do ministro relator, garantindo a eficácia dos acordos e convenções coletivas em detrimento da legislação, desde que respeitados os direitos fundamentais.
Mas quais seriam os efeitos práticos na área trabalhista e sindical de tal decisão do Supremo Tribunal Federal? E, ainda, quais os reflexos e limites para que o negociado possa prevalecer sobre o legislado?
De início, impende frisar que a negociação coletiva enfrenta limites. Vale dizer: se for constatada que tal negociação tem por fim ato de estreita de renúncia de direitos trabalhistas, essa por certo não poderá prevalecer, sendo oportunas as palavras do professor Homero Batista [5]:
“(…). É muito fácil dizer simplesmente que não se pode negociar matéria concernente à saúde, higiene e segurança do trabalho, ou, mais fácil ainda, dizer que não se pode transigir em norma de ordem pública.
Ocorre que o fervilhar das relações trabalhistas torna difícil saber até onde vai a segurança do trabalho e onde termina a norma de ordem pública, se, aliás, todo o Direito do Trabalho parece ter sido forjado na adversidade.
(…). Em verdade, mesmo sem prévio conhecimento o leitor quanto às extensas enumerações dos artigos 611-A e 611-B, podemos resumi-los dizendo que o campo da vedação recai sobre tudo aquilo que obteve assento constitucional e o campo da permissão recai sobre o que ficou de fora da ordem constitucional. Mesmo quanto o permissivo do artigo 611-A afirma que pode haver negociação coletiva sobre jornada de trabalho, por exemplo, ele logo emenda para dizer que a negociação está adstrita ao mínimo constitucional, mitigando a relevância de sua própria previsão (art. 611-A, I, exemplificativamente).
Por isso, é indispensável o conhecimento prévio do próprio art. 7º da Carta Política, o qual, apesar de já lido e relido, sempre oferece novos contornos”.
Entrementes, registre-se que, desde o julgamento ocorrido em 2/6/2022, alguns magistrados já estavam seguindo o direcionamento da Suprema Corte, formando-se, de lá para cá, uma nova jurisprudência em torno da temática na esfera do Poder Judiciário Trabalhista. Aliás, a polêmica agora que deverá se instaurar é justamente na interpretação e na aplicação da tese da repercussão geral em razão dos limites da negociação coletiva.
A título de exemplo, o Tribunal Superior do Trabalho foi provocado a emitir juízo de valor quanto à validade de norma coletiva a respeito da redução do intervalo intrajornada, com base no Tema 1.046 da tabela de Repercussão Geral [6]. No leading case, o Tribunal Regional do Trabalho considerou inválida a norma coletiva, cuja decisão foi ao final reformada.
Em seu voto, o ministro relator salientou o seguinte:
“Com a reforma trabalhista, a Lei nº 13.467/2017 estabeleceu novos parâmetros à negociação coletiva, introduzindo os artigos 611-A e 611-B à CLT, que possibilitam a redução do intervalo intrajornada, respeitado o limite mínimo de 30 minutos para jornada superior a seis horas, fazendo, ainda, constar que regras sobre duração do trabalho e intervalos não são consideradas como normas de saúde, higiene e segurança do trabalho para os fins da proibição de negociação coletiva”.
Nesse desiderato, o colegiado entendeu que a matéria trazida à baila atendia ao precedente vinculativo do Supremo Tribunal Federal e, de igual sorte, também estava em conformidade com as normas brasileiras.
De mais a mais, em outra situação abrangendo a validade de norma coletiva quanto à integração dos minutos residuais da jornada de trabalho, o Tribunal Superior do Trabalho seguiu o mesmo raciocínio, e, para tanto, reformou a decisão do Tribunal local, afastando a condenação da empresa [7].
Em seu voto, o ministro relator, pontuou:
“É entendimento desta c. Corte Superior que deve ser considerado como jornada de trabalho todo o tempo que o empregado permanece nas dependências da reclamada, tendo em vista que está sujeito às suas ordens, além de que a realização de outras atividades se dá em prol da melhor execução do trabalho. Contudo, não há como ser aplicado esse entendimento quando o Tribunal Regional evidencia a existência de norma coletiva prevendo que o tempo de permanência nas dependências da empresa por conveniência do empregado deve ser excluído da jornada de trabalho. Isso porque o caso em análise não diz respeito diretamente à restrição ou redução de direito indisponível, aquele que resulta em afronta a patamar civilizatório mínimo a ser assegurado ao trabalhador, mas a apenas a “flexibilização da jornada de trabalho”.
Outra questão que desperta polêmica diz respeito à possibilidade de a norma coletiva vir a fixar natureza jurídica a determinada verba trabalhista, já que não raros são os debates acerca de tal classificação. Nesse sentido, o Tribunal Superior do Trabalho também já foi provocado em um caso cuja controvérsia instaurada se deu em torno da validade de cláusula coletiva que previu a natureza indenizatória do adicional risco de vida[8].
Conquanto o Tribunal Regional tenha entendido pela natureza salarial da verba, dado ao fato de que o adicional de risco compõe a base de cálculo das contribuições previdenciárias e dos recolhimentos de FGTS, o Tribunal Superior do Trabalho reformou essa decisão, atribuindo validade à norma coletiva em questão, estabelecendo, ao final, natureza indenizatória.
Em seu voto, o ministro relator, ponderou:
“Sopesando a teoria do conglobamento aplicada às hipóteses, ao princípio da lealdade negocial, em conjunto com a exegese do art. 7º, da Constituição Federal, a decisão direciona a compreensão de que os acordos e convenções coletivas são instrumentos legítimos de prevenção e de autocomposição das lides trabalhistas, e suas cláusulas, portanto, não podem ser alteradas de forma independente, sob pena de invalidade do acordo em sua integralidade, diante da própria natureza sinalagmática do pacto coletivo”.
Noutro giro, em um caso envolvendo a forma de repasse e divisão das gorjetas, via norma coletiva, o Tribunal Superior do Trabalho entendeu pela validade da norma, prestigiando, assim, a negociação coletiva [9].
Indubitavelmente, os tribunais trabalhistas de todo o país deverão seguir o direcionamento da Suprema Corte, notadamente porque a tese de repercussão geral fixada no Tema 1.046 é vinculativa e “erga omnes”. Contudo, cabe aqui uma reflexão ao momento em que fixado tal posicionamento, na medida em que, pós Lei da Reforma Trabalhista de 2017, é sabido que a facultatividade da contribuição sindical enfraqueceu os sindicatos, cuja representatividade ficou comprometida com vistas a criar um “jogo de forças” para combater uma pretensa “flexibilização” das normas trabalhistas.
Aliás, para confirmar tal constatação, um recente estudo concluiu que, no ano de 2021, o Brasil chegou a ter o menor número de negociação coletiva desde o ano de 2010. Igual acentuada queda se verificou com o número de associados em razão da baixa taxa de sindicalização [10].
A par de todo o exposto, infere-se que hoje a atual jurisprudência do Tribunal Superior do Trabalho caminha no mesmo sentido do entendimento pacificado pela Suprema Corte, autorizando a “flexibilização” das normas trabalhistas, desde que, claro, não sejam afrontados patamares mínimos civilizatórios assegurados aos trabalhadores previstos na Lei Maior. Logo, não há mais dúvidas acerca do exercício do direito, tampouco do fomento à negociação coletiva, assegurados que são pelas Convenções 98 [11] e 154 [12], ambas da Organização Internacional do Trabalho.
Se, por um lado, está sacramentada a autonomia privada coletiva prevista no artigo 7º, inciso XXVI [13], da Carta da República, em razão da decisão do Supremo Tribunal Federal no ARE 1.121.633; lado outro, necessário compreender em detalhes as hipóteses autorizadoras da prevalência do negociado sobre o legislado, referidas exemplificadamente no artigo 611-A da CLT, e aquelas infensas às normas oriundas de convenções e acordos coletivos, taxativamente descritas no artigo 611-B da CLT [14].
Em arremate, indiscutível que se esteja atualmente diante de um período de amadurecimento da jurisprudência trabalhista. E, mais, muito embora o entendimento firmado pela Suprema Corte seja no sentido que o negociado prevaleça sobre o legislado, fato é que se estatuiu o limite de que sejam respeitados os direitos absolutamente indisponíveis, e, na falta de parametrização traçada pelo próprio STF, pode-se dizer que o rol de matérias hoje previsto no artigo 611-B da CLT deve ser representativo desse limite.
[1] Disponível em https://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=5415427. Acesso em 13/12/2022.
[2] Disponível em https://portal.trt23.jus.br/trtnoticias/noticias/fique-sabendo-fique-por-dentro/stf-gilmar-mendes-cancela-suspensao-de-processos-sobre#:~:text=O%20ministro%20Gilmar%20Mendes%2C%20do,%C3%A0%20legisla%C3%A7%C3%A3o%20de%20direitos%20trabalhistas. Acesso em 13/12/2022.
[3] Disponível em https://g1.globo.com/politica/noticia/2022/06/02/supremo-acordo-coletivo-deslocamento-trabalhador.ghtml. Acesso em 25/10/2022.
[4] Disponível em https://portal.stf.jus.br/processos/downloadPeca.asp?id=15355166656&ext=.pdf. Acesso em 13/12/2022.
[5] CLT comentada — 3ª ed. — São Paulo: Thompson Reuters Brasil, 2021. Página 453 e 454.
[6] Disponível em https://consultaprocessual.tst.jus.br/consultaProcessual/consultaTstNumUnica.do?consulta=Consultar&conscsjt=&numeroTst=756&digitoTst=36&anoTst=2017&orgaoTst=5&tribunalTst=09&varaTst=0002&submit=Consultar. Acesso em 13/12/2022.
[7] Disponível em https://consultaprocessual.tst.jus.br/consultaProcessual/consultaTstNumUnica.do?consulta=Consultar&conscsjt=&numeroTst=12153&digitoTst=22&anoTst=2016&orgaoTst=5&tribunalTst=03&varaTst=0026&submit=Consultar. Acesso em 13/12/2022.
[8] Disponível em https://consultaprocessual.tst.jus.br/consultaProcessual/consultaTstNumUnica.do?consulta=Consultar&conscsjt=&numeroTst=20578&digitoTst=29&anoTst=2017&orgaoTst=5&tribunalTst=04&varaTst=0332&submit=Consultar. Acesso em 13/12/2022.
[9] Disponível em https://consultaprocessual.tst.jus.br/consultaProcessual/consultaTstNumUnica.do?consulta=Consultar&conscsjt=&numeroTst=80&digitoTst=53&anoTst=2020&orgaoTst=5&tribunalTst=09&varaTst=0303&submit=Consultar. Acesso em 13/12/2022.
[10] Disponível em https://www.redebrasilatual.com.br/trabalho/reforma-trabalhista-contraditoria-negociacao-coletiva-enfraquecer-sindicatos/. Acesso em 13/12/2022.
[11] Disponível em https://www.ilo.org/brasilia/convencoes/WCMS_235188/lang–pt/index.htm. Acesso em 7/6/2022
[12] Disponível em https://www.ilo.org/brasilia/convencoes/WCMS_236162/lang–pt/index.htm. Acesso em 7/6/2022.
[13] Art. 7º — São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição social: (…). XXVI – reconhecimento das convenções e acordos coletivos de trabalho.
[14] Disponível em https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del5452.htm. Acesso em 13/12/2022.
Ricardo Calcini é mestre em Direito do Trabalho pela PUC-SP, professor de Direito do Trabalho da FMU, coordenador trabalhista da Editora Mizuno, membro do Comitê Técnico da revista Síntese Trabalhista e Previdenciária, coordenador acadêmico do projeto “Prática Trabalhista” (ConJur), membro e pesquisador do Grupo de Estudos de Direito Contemporâneo do Trabalho e da Seguridade Social, da Universidade de São Paulo (Getrab-USP), do Gedtrab-FDRP/USP e da Cielo Laboral.
Leandro Bocchi de Moraes é pós-graduado lato sensu em Direito do Trabalho e Processual do Trabalho pela Escola Paulista de Direito, pós-graduado lato sensu em Direito Contratual pela PUC-SP, pós-graduando em Direitos Humanos pelo Centro de Direitos Humanos da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, membro da Comissão Especial da Advocacia Trabalhista da OAB-SP, auditor do Tribunal de Justiça Desportiva da Federação Paulista de Judô e pesquisador do núcleo O Trabalho Além do Direito do Trabalho, da USP.
Revista Consultor Jurídico, 15 de dezembro de 2022
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