Por Notas & Informações
A aprovação do arcabouço fiscal proporcionou ao governo uma folga temporária para elaborar o Orçamento de 2024 com mais flexibilidade. Com o antigo teto de gastos, o Executivo não teria espaço para garantir um aumento real de despesas e seria obrigado a promover severo corte nos dispêndios discricionários, com riscos para o funcionamento da máquina pública.
O enterro definitivo do teto, por outro lado, ressuscitou os pisos constitucionais de educação e saúde. Entre 2016 e 2023, essas despesas vinham sendo reajustadas pela variação da inflação. Agora, volta a valer o mecanismo de correção definido na Constituição. No caso da saúde, os gastos precisam corresponder a, no mínimo, 15% da Receita Corrente Líquida (RCL); para a educação, o equivalente a 18% da Receita Líquida de Impostos (RLI).
No curto prazo, a pressão já será considerável. De forma imediata, as duas áreas teriam de ter as despesas majoradas em R$ 18 bilhões neste ano. Este seria o valor proporcional dos pisos, equivalente ao período entre setembro e dezembro, uma vez que o teto de gastos deixou de existir em 31 de agosto – controvérsia a ser discutida com o Tribunal de Contas da União (TCU).
Já para o ano que vem, não há dúvidas. Saúde e educação vão consumir R$ 58,8 bilhões do espaço para ampliação dos gastos no Orçamento, que será de R$ 129 bilhões. Como mostrou o Estadão, o valor reservado para saúde e educação equivale a 35% da arrecadação adicional de R$ 168 bilhões necessária para zerar o déficit fiscal em 2024.
Isso, por si só, já seria um problema, uma vez que parte do pacote de medidas tributárias anunciado pelo governo ainda não está em vigor. É o caso da taxação dos fundos exclusivos e offshore e das apostas esportivas, que dependem da aprovação do Congresso Nacional. Há outras implicações mais sérias no retorno dos pisos constitucionais de saúde e educação no médio e longo prazos. Ao se vincularem às receitas, e não às despesas, os pisos tendem a crescer de forma mais acelerada do que o restante dos gastos.
Ciente do problema, o próprio governo afirmou que pretende enviar uma Proposta de Emenda à Constituição (PEC) para corrigir esses pisos de outra forma, ainda não definida. O Tesouro Nacional recomendou, por sua vez, que os dispêndios com saúde e educação acompanhem a regra do arcabouço, de forma a impedir o aumento da rigidez orçamentária e a compressão do espaço das demais despesas.
Tal debate impõe um novo desafio ao governo, uma vez que impacta gastos considerados sensíveis para apoiadores e o Congresso. Na discussão do arcabouço fiscal, essa pressão acabou por garantir a exclusão, do alcance da norma, dos pisos salariais dos professores da rede pública e da enfermagem – pressão que certamente voltará quando a discussão dos pisos constitucionais se apresentar.
Há, portanto, excelentes motivos, de ordem fiscal e política, para o governo se antecipar a esse movimento. Como já dissemos neste espaço, gastos com saúde e educação não são mais meritórios que os de outras áreas. Se uma despesa, independentemente de sua natureza, foi incluída no Orçamento-Geral da União, parte-se do princípio de que ela é necessária. A regra do arcabouço, por sua vez, já permite o crescimento dos gastos acima da inflação, o que deveria ser mais do que suficiente para acomodar as despesas das duas áreas.
O empoçamento de gastos, que ocorre todos os anos, é sinal de que há mais recursos para saúde e educação do que capacidade de desembolsá-los. Cumprir a norma e aplicá-los mal, sem vinculação a uma política pública consistente, seria jogar dinheiro fora, verdadeiro desrespeito com a sociedade.
Se ainda assim julgar que é preciso conceder tratamento privilegiado para saúde e educação, ou seja, um reajuste das despesas acima da inflação, o governo terá de fazer escolhas, reduzindo os gastos de outras áreas e revendo subsídios e renúncias fiscais – e pagar o preço por elas. Essa é a forma adequada de preservar as rubricas que considera prioritárias e a essência do arcabouço fiscal.
https://www.estadao.com.br/opiniao/o-dever-de-cortar-gastos
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