09 de outubro, 2024

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O DNA do populismo na volta da fome

Mano Ferreira, O Estado de S.Paulo

Com honrosas exceções, o Congresso Nacional decidiu criar uma espécie de vale-combustível bilionário, com prazo de validade eleitoralmente oportunista, enquanto 33 milhões de pessoas estão passando fome. Às vésperas da eleição, concedemos ao governo o poder de distribuir cheques sem fundos. A conta será paga com inflação e aumento de juros, prejudicando os mais pobres. Tudo isso com tramitação em tempo recorde, por meio da PEC Kamikaze, mudando a Constituição como quem troca de roupa para abrir novos furos no teto de gastos. Tamanha falta de responsabilidade com o dinheiro público ecoa uma velha frase de Nelson Rodrigues: “O subdesenvolvimento não se improvisa, é obra de séculos”.

O número de brasileiros vítimas de insegurança alimentar mais que dobrou em relação ao ano passado, segundo dados do Ipea. Retomamos o patamar de 1993. O retrocesso de três décadas é resultado da irresponsabilidade fiscal e do populismo, reencarnados nesta PEC. Estamos regredindo à era pré-Plano Real. Não é coincidência. A inflação é a maior companheira da fome. Para quem tem pouco, a inflação derrete o dinheiro no carrinho de compras e esvazia a geladeira. Em busca de votos, a PEC Kamikaze alimenta a inflação à custa do ronco na barriga de milhões de crianças.

Não há dúvida de que vencer a fome deveria ser prioridade máxima para o Brasil. Exceto uma guerra, nada pode ser pior do que o crescimento da miséria. Quando um ser humano é privado das condições básicas de sobrevivência, perde as perspectivas. É difícil de pensar o futuro enquanto o estômago aperta de dor. A fome ataca a dignidade e desafia as maiores propriedades humanas. Como falar em escolhas, responsabilidade individual ou mérito? Quem tem fome não é livre. E um país que aceita conviver com a fome desistiu de ser nação.

O ponto é que tornar o combate à fome prioridade nacional exige substituir o populismo eleitoral por compromisso e seriedade para encarar nossos paradoxos. A começar com um fato indigesto: não falta dinheiro. Destinamos, anualmente, 27% do PIB para gastos sociais. Quase R$ 2 trilhões ao ano. Mais de R$ 5 bilhões por dia. Significa que já reservamos uma boa soma de recursos para o problema social, mas deliberadamente escolhemos continuar gastando mal. No lugar de desenhar, com rigor, políticas públicas emancipatórias, decidimos torrar bilhões em vale-combustível fóssil, sem nenhum potencial de legado social. O prazo de validade sob medida deixa evidente: no lugar de tratar do futuro do País, o Congresso prefere a conveniência eleitoral.

Priorizar é escolher. Escolher de verdade também exige renunciar. Para escolher combater a fome, precisamos renunciar às ineficiências que sequestram o orçamento público. Se o dinheiro não chega a quem realmente precisa, obviamente está indo para quem não precisava de verdade. O grande problema, sabemos bem, é como diferenciar um caso do outro. Isoladamente, todo mundo se sente muito especial e merecedor da ajuda estatal. Quando o critério é apenas o potencial de votos, o lobby mais influente sempre ganha um subsídio a mais. Por outro lado, acabar com uma destinação ineficiente de recursos contraria diretamente interesses concentrados, com alto poder de mobilização. É, portanto, uma decisão politicamente difícil, que enfrenta resistências de toda ordem, mas que precisa ser tomada. Por respeito aos brasileiros que sofrem famintos.

O aspecto mais intrigante é que já temos uma boa experiência em política social para nos guiar, mas os políticos das variadas matizes ideológicas seguem reféns do velho populismo. O programa Bolsa Família foi um grande sucesso porque unificou programas que já existiam, aumentando a focalização e a eficiência do gasto. Esta é a lógica que precisa ser atualizada, como propõe a Lei de Responsabilidade Social, do senador Tasso Jereissati, elaborada pelo Centro de Debate de Políticas Públicas (CDPP) e parte do Caderno de Políticas Públicas do Movimento Livres. Poderíamos zerar a fome imediatamente utilizando a estrutura já existente dos Centros de Referência em Assistência Social e unificando Auxílio Brasil, Salário Família, Seguro Defeso e Abono Salarial em uma transferência direta mais bem focalizada.

O segundo passo necessário é a promoção da inclusão produtiva, para devolver autonomia aos beneficiários. O clichê continua verdadeiro: a melhor política social é o emprego. Nesse sentido, precisamos retomar o trem do crescimento econômico, mas garantindo que os vagões onde estão os mais pobres estejam conectados neste trilho. Para isso, Ricardo Paes de Barros propõe a criação dos Agentes de Desenvolvimento Social, responsáveis por identificar os gargalos que impedem a geração de renda autônoma das famílias e ajudá-las a encaminhar a superação.

Nenhum esforço será efetivo, contudo, se não estancarmos a inflação. Ela rouba o poder de compra, inclusive dos beneficiários da PEC Kamikaze, produzindo efeitos muito mais perversos sobre aqueles que mais precisam. Os mais pobres, suas liberdades e as oportunidades de construir o futuro sempre são as maiores vítimas da irresponsabilidade fiscal e do populismo.

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JORNALISTA, É COFUNDADOR E DIRETOR DO MOVIMENTO LIVRES

 

 

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