Notas&Informações, O Estado de S.Paulo
Em tempos de crescente fome e insegurança alimentar no Brasil e no mundo, é perturbadora a estimativa de que um terço dos alimentos anualmente produzidos no planeta se perde ou é desperdiçado. O dado foi divulgado pelo Boston Consulting Group, consultoria internacional que prevê o agravamento do problema nos próximos anos. A projeção é que o mundo chegará a 2030 deixando de aproveitar 2,1 bilhões de toneladas de alimentos por ano, o que significa dizer que tamanha quantidade de carnes e vegetais de todo tipo vai simplesmente apodrecer ou ser jogada fora, em vez de alimentar a população global.
Impossível não pensar em outra estimativa, tão ou mais assustadora, recentemente divulgada pela Organização das Nações Unidas (ONU): até 828 milhões de pessoas, quase 10% da população mundial, enfrentaram privação alimentar no ano passado, ou seja, passaram fome. A situação agravou-se em decorrência da pandemia de covid-19 e, atualmente, sofre também os efeitos da guerra na Ucrânia. Vale lembrar que outros 2,3 bilhões de pessoas (29,3% da população global), conforme a ONU, viviam a chamada insegurança alimentar, isto é, tinham que lidar com incertezas a respeito de sua capacidade de obter comida, o que é sinônimo de redução da quantidade e da qualidade dos alimentos ingeridos.
É nesse cenário que as projeções do Boston Consulting Group se tornam ainda mais aterradoras. Para ter ideia do que representam 2,1 bilhões de toneladas de alimentos − a quantidade que deverá ser perdida em 2030, no mundo −, basta dizer que toda a produção de grãos no Brasil, na atual safra, deve chegar a 271 milhões de toneladas ou 13% disso. A consultoria estima também que o prejuízo financeiro atingirá US$ 1,5 trilhão em 2030. De novo, a título de comparação, vale registrar que tal cifra corresponde a quase todo o Produto Interno Bruto (PIB) do Brasil.
Não resta dúvida de que a diminuição das perdas e do desperdício de alimentos envolve uma questão humanitária. É assombroso, para dizer o mínimo, pensar que milhões de pessoas estão passando fome neste exato instante, enquanto toneladas de comida se perdem pelo caminho − ou vão parar no lixo. Há também uma série de questões econômicas, logísticas, ambientais e de hábitos de consumo sobre as quais o Boston Consulting Group se debruçou, e para as quais há soluções ou recomendações que vale a pena conhecer.
A consultoria faz uma clara distinção entre perdas de alimentos e desperdício, e estima que aproximadamente metade da comida descartada é de frutas e legumes. A cadeia produtiva da maçã é citada como exemplo: para cada 10 milhões de maçãs, segundo a consultoria, 13% se perdem no próprio processo de produção; 6%, no armazenamento, manuseio e transporte; 1%, no processamento e embalagem; 6%, na distribuição e no varejo; e 8% delas são desperdiçadas pelos consumidores finais, totalizando 34% de perdas. Em resumo, de cada 10 milhões de maçãs, 3,4 milhões ficam pelo caminho ou são jogadas no lixo.
O estudo destaca que é possível reduzir esses índices, a ponto de cortar o prejuízo financeiro quase pela metade, o que permitiria economizar US$ 700 bilhões ao ano, como mostrou recente reportagem do Valor. A mobilização nesse sentido precisa envolver governos, produtores rurais, empresas, consumidores e a sociedade em geral. Há muito a ser feito, seja do ponto de vista macro ou micro. Na Amazônia, por exemplo, o relatório estima que 3% dos peixes acabam sendo descartados por causa de deficiências no transporte. Colheitas prematuras também geram perdas, assim como o estímulo para que clientes em bufês se sirvam de porções maiores do que realmente vão comer.
Uma das recomendações é justamente aumentar a conscientização dos consumidores, assim como criar mecanismos regulatórios ou fiscais para desencorajar perdas e desperdícios. Enfim, a lista é longa − e é preciso agir com rapidez. Como dizia o sociólogo Herbert de Souza, o Betinho, quem tem fome tem pressa. É inaceitável que o mundo abra mão dos alimentos que produz em meio a tanta gente que não tem o que comer.
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