Notas&Informações, O Estado de S.Paulo
Em estudo de sua lavra apresentado no Planalto, o presidente do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), Erik Alencar de Figueiredo, contestou o aumento da fome no Brasil, despertando apreensões em relação à autonomia e à credibilidade científica do órgão. Não pelo questionamento em si, mas pelo momento e o modo como foi feito.
Decerto ele choca ao colidir com aquilo que qualquer habitante das metrópoles vê a olho nu: a população de miseráveis que se alastra nas ruas. Mas o ceticismo é a alma da ciência. Afinal, todos os dias vemos o Sol girar ao redor da Terra.
Recentemente, a Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional apontou que 33,1 milhões de brasileiros passam fome. Pouco depois, a ONU computou 15,4 milhões. A disparidade – mais que o dobro – é inquietante. Qual a dimensão da fome no Brasil? Quais os critérios para aferi-la?
São respostas cruciais para planejar políticas públicas. A função de fundações e institutos públicos, como o Ipea ou o IBGE, é justamente subsidiar essas políticas com informações confiáveis. Eles são parte da administração indireta do Estado, com autonomia administrativa e financeira. Sua credibilidade está alicerçada em uma atuação independente, como órgãos a serviço do Estado, e não porta-vozes do governo de turno. Nos anos 70, em plena ditadura, por exemplo, o Ipea foi o centro difusor de pesquisas e debates sobre os escandalosos índices de distribuição de renda no Brasil.
Enquanto órgãos públicos, pesa sobre eles uma especial responsabilidade em períodos eleitorais. Para não influenciar indevidamente os votos, é comum que seus dirigentes evitem dar entrevistas, até para não correr o risco de violar a legislação eleitoral, que proíbe a publicidade institucional em época de eleições. Não que devam deixar de divulgar pesquisas, muito menos de pesquisar. Na verdade, o comportamento indevido pode se dar não só pela propagação inadequada de dados sensíveis, mas pela sua omissão.
Muito da credibilidade do próprio Ipea foi arranhada por sonegação de informações de interesse público na gestão petista. Nas eleições de 2014, por exemplo, o órgão adiou, sob pressão, a divulgação de dados que desmoralizavam a propaganda de Dilma Rousseff sobre a queda da desigualdade. Dois dirigentes pediram exoneração em protesto contra essa “pedalada estatística”. Agora, o risco é inverso.
O argumento de Figueiredo – de que a escalada da fome deveria resultar em um choque expressivo nas internações por doenças decorrentes da fome e da desnutrição e nos nascimentos de crianças abaixo do peso – é até pertinente. Mas, em primeiro lugar, é suspeito que o material não tenha sido, como de praxe, discutido com outros pesquisadores ou submetido a seu parecer. De resto, ainda que legalmente Figueiredo tenha autonomia para divulgá-lo, seus critérios são questionáveis. Especialistas sugerem, por exemplo, que o impacto da desnutrição na rede hospitalar demora para acontecer.
São divergências que merecem um debate calcado no apuro científico. Mas, com dados tão sensíveis, esperava-se do presidente do Ipea mais prudência. Se não basta que a mulher de César seja casta, é preciso que pareça, tanto pior se ela parecer sem ser.
A ironia é que a escalada da fome foi justamente o pretexto para o governo concertar com o Congresso um “estado de emergência” e atropelar a Constituição, as regras fiscais e a ordem jurídica para distribuir pacotes de bondades em plenas eleições.
Perdido entre a aparência e a realidade, o governo precisa dirimir sua guerra intestina de narrativas: ou o País prospera a pleno vapor, deixando a fome para trás, ou há uma multidão agonizando na vala comum da miséria que precisa de seus auxílios. Em tempos de pós-verdade, ele pode até despejar “econometrias” e “evidências científicas” para sustentar, à sua conveniência, ambas as versões. Mas para o cidadão comum que põe o pé na rua é difícil negar a miséria que vê com seus próprios olhos, e, para as legiões que disputam restos em caminhões de lixo e ossos em açougues, as ponderações técnicas sobre a fome soam como piada.
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