Notas & Informações, O Estado de S.Paulo
Há 75 anos erguia-se sobre o céu de Hiroshima uma rosa nuclear, imprimindo indelevelmente no imaginário global o pavor da hecatombe. Até que, após 13 dias de pânico na crise dos mísseis de Cuba de 1962, a comunidade internacional, aliviada, ratificou, em 1970, o Tratado de Não Proliferação Nuclear, e EUA e União Soviética logo pactuaram os Tratados de Mísseis Antibalísticos e de Redução de Armas. Mas, no mundo multipolarizado e volátil do século 21, alguns dos principais pilares da segurança nuclear estão desmoronando. Recentemente, a subsecretária-geral da ONU para o desarmamento, Izumi Nakamitsu, constatou que o risco de uma detonação nuclear está “no seu auge desde o pico da guerra fria”.
Desde os anos 70, houve momentos radiantes de esperança. Países como a Líbia e o Brasil renunciaram voluntariamente aos seus programas de armamento nuclear. A África do Sul chegou a desmantelar suas bombas. Por iniciativa do Brasil, México, Suécia e outros Estados, o Tratado de Proibição de Armas Nucleares, que terá força legal quando for ratificado por 50 nações, já foi ratificado por 43. Ele não foi endossado pelos nove Estados nucleares – EUA, Rússia, China, França, Reino Unido, Índia, Paquistão, Israel e Coreia do Norte –, que estão investindo pesadamente na modernização de seus arsenais.
As negociações do presidente norte-americano, Donald Trump, com a Coreia do Norte estão, para todos os efeitos, paralisadas, e tudo indica que o regime de Kim Jong-un está retomando seus testes com mísseis. Após Trump retirar abruptamente os EUA do acordo com o Irã de 2015, pelo qual os aiatolás se comprometeram a limitar o enriquecimento de seus estoques de urânio, o pacto está à beira do colapso. Na atmosfera volátil do Oriente Médio e do Leste Asiático, os vizinhos ameaçados podem ser tentados a ativar seus próprios programas.
O exemplo e a iniciativa deveriam vir de cima. Mas Índia, Israel, Paquistão e Coreia do Norte nem sequer assinaram o Tratado de Não Proliferação. Mais importante: os acordos entre Rússia e EUA, que juntos possuem mais de 90% dos arsenais nucleares mundiais, estão se dissolvendo.
Logo após retirar os EUA do tratado com o Irã, Trump, sob alegação de irregularidades russas, retirou o país do Tratado de Forças Nucleares de Alcance Intermediário, que por três décadas impediu as duas potências de desenvolverem mísseis de curto e de médio alcance.
Em 2010, os dois países repactuaram a mais recente versão do Tratado de Redução de Armas Estratégicas, o Novo Start, que limita os arsenais de longo alcance e permite inspeções mútuas. O acordo expira em fevereiro de 2021, e Trump chegou a dizer ao presidente russo, Vladimir Putin, que não tem interesse em refazê-lo. Um dos motivos de seu menosprezo é que ele foi negociado pelo seu antecessor, Barack Obama, mas o principal é que sua administração espera que a Rússia aja consistentemente para trazer a China para o pacto. A tendência da Rússia, por seu turno, é insistir que França e Reino Unido também sejam envolvidos. Porém, é previsível que estes países, sobretudo a China, relutem em aderir a qualquer proposta de redução de seus arsenais.
As ameaças de Trump podem ser um blefe – e talvez ele nem esteja na Casa Branca para dar a última cartada –, mas é um blefe perigoso. Se o Start não for renegociado, pela primeira vez desde 1972 já não haverá nenhuma limitação bilateral que impeça Rússia e EUA de ampliarem seus estoques.
Contra as esperanças de um mundo livre de armas nucleares, o risco de um mundo em que todos são livres para desenvolver suas armas nucleares é cada vez mais real. A revisão quinquenal do Tratado de Não Proliferação, que deveria ter ocorrido no início do ano, foi prorrogada em razão da pandemia, e promete ser tensa. Antes de distrair a comunidade global, a catástrofe real da covid-19 deveria servir de alerta para a catástrofe potencial da proliferação nuclear. As engrenagens do relógio do Juízo Final continuam a rodar. Se essa geração não pode desmantelá-lo, ainda assim precisa fazer de tudo para paralisar a contagem regressiva.
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