Notas & Informações, O Estado de S.Paulo
Como culminação de 244 anos ininterruptos de democracia nos Estados Unidos, a posse do seu 46.º presidente, Joe Biden, foi insolitamente austera. Sem as multidões eufóricas, assistida apenas pelas autoridades com suas máscaras na escadaria do Capitólio e um punhado de convidados na esplanada, tanto maior é o contraste quando se pensa nas mesmas escadarias tomadas por turbas enfurecidas há apenas duas semanas.
O contraste só não é maior do que em relação à despedida melancólica de Donald Trump, que se recusou a participar da cerimônia. Enquanto Biden, acompanhado de uma comissão bipartidária, ia à missa antes da posse, Trump desfiava um discurso eivado de distorções triunfalistas sobre sua administração, antes de embarcar para seu resort na Flórida. Nada – a não ser talvez os perdões judiciais concedidos a familiares, amigos e sequazes – poderia ser mais emblemático: sua administração nunca tratou de nada além dele mesmo. Após quatro anos, não resta dúvida que o lema “America First” foi apenas um mal disfarçado “Trump First”.
“Este é o dia da democracia. Um dia da história e esperança, de renovação e resolução. Através do crisol das eras, a América foi reiteradamente testada e a América se ergueu diante do desafio. Hoje celebramos o triunfo não de um candidato, mas de uma causa, a causa da democracia.” Essas foram as primeiras palavras do presidente após o juramento. “Nós aprendemos de novo que a democracia é preciosa, a democracia é frágil e, nesta hora meus amigos, a democracia prevaleceu.”
É um admirável paradoxo que, num dos momentos em que os Estados Unidos mais precisam um herói, Biden é tudo menos um “salvador da pátria”. Aos 78 anos, ele é notório pela aversão a ideias grandiloquentes e gestos hiperbólicos. Quando os democratas o escolheram como candidato contra Bernie Sanders, optaram pelo pragmatismo. E o mesmo fez o povo americano.
Com uma carreira marcada por uma mistura de moderação, competência e empatia, seu discurso inaugural refletiu os grandes temas da campanha: superar a pandemia e a divisão nacional. “Toda a minha alma está nisso. Reunir a América, unir o nosso povo, unir a nossa nação.” Nenhuma palavra repercutiu mais em seu discurso do que “unidade”. “A história, a fé e a razão mostram o caminho – o caminho da unidade.” “Sem unidade não há paz, só amargor e fúria.” “Devemos enfrentar esse momento como os Estados Unidos da América.”
Os ventos são favoráveis. A vacinação está em franca aceleração. A economia está pronta para retomar a tração. Biden terá maioria nas duas Casas e quase toda a mídia e a elite cultural a seu favor. O primeiro desafio será controlar os rancores dos radicais de seu próprio partido. Mas o maior será alcançar os 74 milhões de americanos que votaram em Trump. “Devemos pôr fim a essa guerra não civil… Podemos fazer isso se abrirmos nossas almas ao invés de endurecer nossos corações.”
Com meio século de vida pública, Biden não é ingênuo. “Eu sei que falar em unidade pode soar a alguns como uma fantasia tola nesses dias. Eu sei que as forças que nos dividem são profundas e são muito reais. Mas também sei que não são novas. Nossa história foi uma constante luta entre o ideal americano, de que somos todos criados iguais, e a dura e feia realidade do racismo, nativismo e medo que nos dilacera. A batalha é perene e a vitória nunca é certa.”
A vitória nunca é certa. Os autocratas e extremistas de todo o mundo cuidarão de lembrá-lo disso. Desde que, no fim da 2.ª Guerra, Harry Truman sentiu o peso da “lua, das estrelas e todos os planetas”, é possível que nunca um presidente americano carregue tanto sobre seus ombros. O fracasso de Biden pode significar o fracasso da democracia liberal e a retaliação furiosa da hidra populista. Mas, neste instante, o mundo pode respirar aliviado, porque um homem que demonstrou um inegável compromisso com a vida pública assume o cargo mais poderoso do planeta em lugar de um egomaníaco insaciável.
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