05 de outubro, 2024

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Personalização e sustentabilidade: uma combinação que não dá match

Foto: jcomp - br.freepik.com

Passo naquela cafeteria de marca global para pedir meu cappuccino com leite de amêndoas, canela, chocolate em pó sem chantili, tamanho “tall”. O copo chega com meu nome escrito. Ah, as delícias da personalização!

Eu, do meu lado, degusto meu cappuccino, sorvendo calmamente cada gole do copo (descartável) com meu nome escrito. Não deixo de usar o mexedor, de algum tipo de madeira (será que é descartável?) e guardanapos de papel.

A famosa rede de cafés, conhecida também por ser o “terceiro lugar”, entre a casa e o escritório, é também entusiasta do “capitalismo consciente”. Uma quase excêntrica visão do capitalismo, assim batizada por John Mackey (fundador da Whole Foods, rede de supermercados queridinha dos amantes da alimentação natural e da sustentabilidade, vendida para Amazon) e Raj Sisodia, em um livro clássico de anos atrás.

Essa concepção de capitalismo consciente envolve a adoção de muitas políticas que se organizam, nos dias de hoje, sob a sigla ESG.

Os leitores e leitoras já sabem, a sigla em inglês para “Meio-ambiente, Impacto Social e Governança”, um conjunto de atitudes e posturas que as empresas devem (deveriam?) adotar para assegurar a saúde dos negócios, das comunidades e do planeta ao mesmo tempo.

Paralelamente, a expansão da digitalização acelerou uma ideia antiga e sempre exaltada: a personalização. Temos aqui um conceito poderoso: a capacidade de coletar dados abundantes sobre os clientes, por meio de interações digitais nos diversos canais – site, e-mail, chat, WhatsApp e outros aplicativos de mensageria, redes sociais, tótens interativos nas lojas, apps de e-commerce, etc.

Esses dados são analisados por sistemas combinados de IA com analistas humanos para gerar insights que alimentam estratégias e possibilidades de personalização de produtos, serviços e ofertas.

Logo, de um lado temos as pressões por empresas mais conscientes, transparentes e sustentáveis. De outro, temos consumidores querendo e mais dispostos a consumir produtos personalizados.

Essa conta não fecha.

Vamos lá. Personalização, pela sua própria essência, por mais que tenha origem em processos racionais de produção, é o exato contrário da ideia de economia circular, por exemplo. Se algo foi feito para mim, se permite e enfatiza minha autoexpressão, por que serviria para você?

Logo, a personalização excessiva não seria um convite ao descarte ilimitado? Ainda que faça questão de consumir produtos “taylor-made” da forma mais sustentável possível, esses produtos só servem, têm significado e sentido para mim.

E isso vai muito além de anagramas, cores e padrões que eu escolhi, que cada consumidor pôde escolher. Esse produto personalizado faz parte da minha relação com a empresa, é quase uma assinatura minha dentro da interação transacional e relacional que mantenho com ela. Após meu uso, só o descarte faz sentido.

Voltando ao caso da cafeteria famosa.  O meu cappuccino personalizado, como o chai da menina da geração Z ou o macchiatto da pessoa mais sênior, com as muitas possibilidades de personalização – essências, caldas, sabores, toppings, tamanhos. A personalização deles consome matérias-primas de forma pouco eficiente. Em doses menores. Em escalas não tão representativas e com maiores possibilidades de descarte precoce ou uso ineficiente e não-intensivo. Em outras palavras, a personalização é um elemento de ineficiência potencial. Customização e personalização são facetas obscuras e incoerentes na promessa do “capitalismo consciente”.

Claro, personalização por si é um fator crítico dos mais relevantes para a criação de réguas de experiência eficientes. Reafirma identidades e permite que o cliente seja reconhecido em cada momento de sua jornada com uma empresa. Mas é convite ao desperdício, onde processos de produção foram empregados para atender desejos pontuais, ocasionais e não necessariamente relevantes.

Mas há formas de conciliar estas ideias tão fortes e atrativas para os clientes? Aqui entra o desafio para os gestores, empreendedores, inovadores: como conciliar percepções e desejos tão distantes entre si? É possível pensar em “personalização sustentável”?

Na verdade, o fato consolidado é que personalização é uma ideia e uma prática muito mais consolidada do que a sustentabilidade. Claro, toda a questão ambiental, separação e descarte de resíduos sólidos, coleta, reciclagem… tudo isso é tão complexo e tão distante da realidade das pessoas que parece extraterrestre.

A sustentabilidade não se provou como valor, não fala à realidade e à necessidade das pessoas comuns, até porque não se tornou uma plataforma com ideias e uso comum, fácil, lógico e intuitivo para as pessoas.

Personalização, por sua vez, é uma ideia consolidada. As pessoas adoram a ideia de ter alguma coisa que parece realmente “feita para elas” (feito para mim).

As empresas já dominaram técnicas e tecnologias que permitem customização em níveis razoavelmente massivos e eficientes. Personalização é elemento central do CX. Assegura recorrência, cria o delight e proporciona a sensação de “eterna descoberta”, essencial para engajar clientes. Mas “eterna descoberta” pressupõe consumo pessoal, seletivo, premium, logo não exatamente sustentável, circular, consciente. Ou seja, falta coisa aí pra dar o match.

Enquanto isso, deixei meio de lado meu cappuccino com leite de amêndoas, canela e chocolate em pó, sem chantili, tamanho tall. Optei por um outro, chamado “degustação”, de uma chocolateria muito incrível, com uma pegada sustentável bem interessante e muito apoio à comunidades locais. Não é personalizado, mas a experiência é única.

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