25 de abril, 2024

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Profissionais de saúde negros usam carreira para cuidar da população negra

Foto: prostooleh - br.freepik.com

Bianca Zanatta, Especial para o Estadão

Segundo um levantamento do site Quero Bolsa feito a partir de dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), o número de pessoas negras no ensino superior cresceu 400% entre 2010 e 2019. Apesar de terem passado a representar 38,15% do total de matriculados, porém, os negros não atingem mais de 30% das vagas em alguns cursos, como psicologia e medicina.

Nesse contexto, as políticas de ação afirmativa têm um papel importante, como a Lei de Cotas, que completa 10 anos neste ano. No caso da medicina, por exemplo, 37,8% dos alunos negros ingressaram por meio de políticas de inclusão ou cotas, de acordo com o estudo ProvMed30, feito em parceria entre o Ministério da Saúde, a USP e a Organização Pan-Americana da Saúde.

Um outro recorte do estudo ligado à população negra, maioria entre os brasileiros (56%), mostra que, ao mesmo tempo em que nunca foram registrados tantos médicos no Brasil – a previsão é chegar a mais de 815 mil até 2030 -, a população não se beneficia igualmente desse crescimento porque a distribuição dos profissionais entre a saúde pública e a privada é desproporcional. Em 2019, a Pesquisa Nacional de Saúde (PNS) do IBGE revelou que 71,5% dos brasileiros usam exclusivamente o SUS, mas somente 21,5% dos médicos atuam integralmente no sistema. Trocando em miúdos, há muito mais médicos concentrados no setor privado, que atende a menor parte da população.

Ciente do problema, a médica Rayssa Okoro, formada pela Universidade Federal do Maranhão e atual moradora de São Paulo, não escolheu a profissão para se especializar em cirurgias complexas ou áreas muito específicas. Nascida em uma família negra de classe média, ela atua no SUS como médica generalista, focada na atenção básica da população em situação de vulnerabilidade.

“Desde que entrei na faculdade, só via sentido em cuidar da população brasileira, que é majoritariamente negra, pobre e usuária do SUS”, diz. “Quero estar nos espaços em que essa população está para garantir que os meus iguais sejam bem cuidados, por uma igual. E quero que as pessoas me vejam de jaleco e turbante e entendam que é possível uma mulher negra ser médica no Brasil.”

Casos como o de Rayssa estão começando a se multiplicar no País: pessoas negras que miram diplomas da área de saúde e direcionam a carreira às necessidades da população negra. Os desafios para que elas se formem e consigam atuar no mercado, no entanto, são maiores. Segundo a médica, faltam políticas públicas que facilitem a permanência dos estudantes negros e de classe baixa no curso de medicina, por exemplo.

“São seis anos de uma faculdade extremamente extenuante e adoecedora, nos sentidos físico e psicológico. Se já é difícil para quem tem todos os privilégios, imagine para quem enfrentou tantas dificuldades para entrar”, defende.

Ela fala que o racismo estrutural é outro fator que dificulta a jornada. “O fato de ser uma pessoa negra tornou a minha experiência na faculdade muito traumática e fez com que eu quisesse desistir em vários momentos, mesmo sendo de classe média. Eu não tinha dificuldades financeiras, mas o ambiente era extremamente nocivo e saí com prejuízos psicológicos marcantes”, revela. “Não adianta ter política de cotas se a gente não está garantindo e incentivando que as pessoas tenham condições financeiras e emocionais de permanecer na universidade.”

Rayssa afirma ainda que a formação em medicina no Brasil é deficitária no cuidado humanizado e que há uma certa mercantilização da profissão. A médica também sublinha a importância de haver profissionais que olhem especialmente para a saúde das pessoas negras, cujo adoecimento muitas vezes pode ser consequência do racismo estrutural – condições precárias de moradia, pouco ou nenhum acesso a alimentação adequada e a acompanhamento médico de qualidade, entre outros fatores.

“Não dá para ignorar que não se cuida bem de qualquer pessoa em qualquer condição só com os conhecimentos da medicina ocidental tradicional”, fala. “Uma pessoa é um sujeito complexo, que tem todas as nuances raciais, políticas e contextuais que vão interferir no processo de vida e de adoecimento dela.”

Representatividade no divã

Especializada na teoria cognitivo-comportamental, a psicóloga Amanda Bachiega conta que era a única aluna negra da sala quando cursou a faculdade, de 2013 a 2017. “De lá para cá, vejo que há um aumento no ingresso de pessoas negras no ambiente acadêmico, aumento de profissionais e também construções de redes de apoio, mas ainda falta muito para chegarmos em patamares igualitários”, afirma.

Ela destaca a importância de a população negra ter acesso ao acompanhamento psicológico com profissionais também negros. “Faz total diferença para a população preta. Por vivermos num mundo tão cheio de preconceito e violência, as lacunas no emocional das pessoas que estão fora do padrão imposto são muito grandes e é difícil para um profissional que não conhece essas particularidades lidar com essas múltiplas questões.”

Como exemplo, ela menciona a transição capilar, que consiste em deixar o cabelo crescer naturalmente depois de um período de alisamento contínuo. A questão, que afeta a psique e a autoestima da mulher negra, é uma vivência que psicólogas brancas não têm. “É um ponto chave no empoderamento e no autoconhecimento”, observa. “Alisar o cabelo é a primeira coisa que fazemos quando queremos entrar no padrão eurocêntrico. E assumir o cacho é a primeira coisa que fazemos quando dizemos não a esse padrão.”

Segundo a psicóloga, porém, somente a formação acadêmica não dá conta de acolher a tantas demandas e camadas que aparecem, principalmente nas questões raciais. Para seus processos terapêuticos, ela passou a ler mais autores negros, aprofundar-se em saúde mental da população negra, entrar em grupos de discussão sobre questões raciais e construir uma rede de apoio com outras profissionais negras. “Representatividade importa muito e é fundamental para a saúde mental”, conclui.

Empoderamento das crianças e adolescentes

O carioca Victor Hugo de Paula conta que quis ser dentista desde criança, quando entrou pela primeira vez em um consultório odontológico do SUS e achou tudo mágico. Aluno de escola pública, ele mergulhou nos estudos e conseguiu se formar em odontologia em 2014. Desde então trabalhou em clínicas de terceiros e relata que o racismo era uma constante.

A gota d’água foi uma situação grave de racismo da qual foi vítima no ano passado. Após um atendimento, ele acompanhou a paciente até a recepção para agendar o retorno. Uma mulher que estava no local olhou para ele e disse: “Se um negão (sic) desses me chama, saio correndo. Nem parece dentista, achei que fosse um funcionário lá de trás”.

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