Ariane Guimarães e Roberto Quiroga, O Estado de S.Paulo
Em meio ao atual cenário de crise econômica decorrente da epidemia de covid-19, diversas medidas foram adotadas a fim de apoiar as empresas e mitigar a perda de empregos e a diminuição de renda, tais como suspensão dos contratos de trabalho, ajuda emergencial e diferimento de tributos. Nesse contexto foi editada a Medida Provisória 936/2020.
Pela Lei n.º 13.670/2018, o direito de optar entre pagar a contribuição sobre a folha ou sobre a receita perdurará até 31 de dezembro de 2020. No entanto, embora no Congresso Nacional tenha sido aprovada a prorrogação da desoneração da folha até dezembro de 2021, o presidente da República vetou esse ponto, por duas razões: a renúncia de receita somente poderia ser aprovada com o cancelamento equivalente de outra despesa obrigatória ou com a estimativa do impacto orçamentário e financeiro; e o assunto seria estranho à matéria abordada na Medida Provisória 936/2020. Discute-se ainda que, do ponto de vista constitucional, a prorrogação até 2021 não seria válida, pois o dispositivo da Constituição que autorizaria a substituição foi revogado. Nenhuma dessas razões subsiste.
O artigo 36 do Projeto de Conversão da Medida Provisória 936/2020 afirma que o indicativo do impacto poderá ser feito por estimativa para acompanhar a Lei Orçamentária Anual, conforme precedentes, e o artigo 34, por outro lado, reinstituiu o adicional de 1% de Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social (Cofins) nas importações até dezembro de 2021, que, além da equivalência tributária com o produto nacional, representa uma indicação de receita. Portanto, há regularidade fiscal, nos termos da legislação.
Em relação à segunda razão do veto, a pertinência da prorrogação da desoneração da folha de pagamentos é manifesta, tendo em vista que a Medida Provisória 936/2020 trata de medidas trabalhistas, previdenciárias, tanto na parte do benefício, ao estabelecer o Benefício Emergencial, quanto no custeio, ao enunciar que a ajuda compensatória terá natureza indenizatória e “não integrará a base de cálculo da contribuição previdenciária e dos demais tributos incidentes sobre a folha de salários”. Isso significa que, sim, a prorrogação da “desoneração da folha de pagamentos” tem pertinência integral com a Medida Provisória 936/2020 porque disciplina sobre contribuição previdenciária tanto no contexto tributário quanto como medida para enfrentar a atual crise econômica.
É evidente o risco de demissões no contexto atual, principalmente nos setores com folha de pagamento desonerada e grande número de empregados, que podem sofrer forte impacto na carga tributária sobre seus empregos.
Por fim, analisemos a possível vedação da Emenda Constitucional 103/2019, a reforma da Previdência, para “prorrogação da desoneração da folha de pagamentos”. Esse argumento se fundamenta na revogação do parágrafo 13 do artigo 195 da Constituição federal, que indicava a possibilidade de instituição de contribuição previdenciária substitutiva por outra base de cálculo. Aliado a isso, somente se autorizaria, a partir da reforma da Previdência, “adoção de bases de cálculo diferenciadas (…) no caso das alíneas ‘b’ e ‘c’, ou seja, Cofins e CSLL” (a Contribuição Social sobre o Lucro Líquido). No entanto, a prorrogação da desoneração da folha de pagamentos não se equipara à instituição de uma nova contribuição substitutiva, mas, sim, de uma postergação do prazo de sua validade, o que não é vedado pela Carta Republicana. A contribuição substitutiva foi criada em perfeita sintonia com a Constituição, o que não se discute na prorrogação. Além disso, o artigo 30 expressamente prevê a manutenção das contribuições substitutivas sobre a folha instituídas anteriormente à aprovação da reforma da Previdência. Nesse particular, é importante esclarecer que a instituição de um tributo diz com a criação, por lei, de uma exação, a partir da indicação dos aspectos da hipótese de incidência, ou seja, com a indicação do contribuinte, da materialidade, das alíquotas. Em verdade, o artigo 33 do Projeto de Conversão da Medida Provisória 963/2020 apenas prorrogou o prazo de contribuição substitutiva, já em vigor desde 2011, não a tendo alterado, portanto.
O governo justifica, ainda, o veto afirmando que a reforma tributária deveria ser o instrumento para tratar de uma “desoneração ampla”, enquanto a prorrogação de uma medida como a desoneração da folha, atualmente em vigor, alcança apenas determinados setores.
Ora, aguardar o “estado de perfeição” para justificar a não prorrogação da desoneração da folha é procrastinar uma medida extremamente importante para decisões de manutenção dos empregos em empresas que contratam mão de obra intensiva. Caso essa questão não seja tratada com a urgência necessária, esperam-se ainda mais demissões, conforme diversos setores já anunciaram na imprensa. A busca pela perfeição nos conduz a um estado de inação, o que, nas ciências da administração de empresas, é visto como uma medida não adequada aos líderes.
Nessas horas, é válido lembrar desta lição: o ótimo é inimigo do bom.
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