Por Rutelly Marques da Silva
Uma agência reguladora, dentro das competências que lhe foram atribuídas pela lei que a criou, sugere alterar uma norma regulatória. Inicia-se um processo de consultas e audiências públicas para que os agentes setoriais se manifestem acerca das vantagens e desvantagens da modificação proposta. Diante da decisão da agência, agentes econômicos que se sentem prejudicados apelam para o Congresso Nacional reverter a mudança regulatória. O que há de errado com essa prática, que tem se tornado comum nos setores de infraestrutura? A resposta para essa pergunta depende da estrutura de governança que desejamos para um determinado setor regulado.
No final do século passado, houve uma redefinição do papel do Estado nos setores de infraestrutura. O Estado empresário deu lugar ao Estado regulador. O objetivo era atrair investidores privados para setores que demandam elevados investimentos em capital, mas com retorno de longo prazo. Adiciona-se a essas características aquela associada ao papel estratégico que esses setores representam para a sociedade e, por consequência, para os agentes políticos. A sensibilidade desses agentes ao que acontece nos setores de infraestrutura cria uma tentação para adotarem medidas com retornos políticos de curto prazo, ainda que, no longo prazo, sejam danosas para a sociedade. O risco de intervenções dessa natureza costuma afastar investidores privados, os quais valorizam a estabilidade de regras e a proteção contra determinadas posturas de agentes políticos que tragam perturbações ao que entendem como bom funcionamento do setor.
Nesse cenário, para atrair os investimentos privados, foi concebido um arranjo de governança no qual caberia ao Congresso Nacional estabelecer as diretrizes e objetivos da política pública, inclusive no que se refere à regulação, e fiscalizar a atuação do Poder Executivo, o que abrange a agência reguladora. O Poder Executivo seria responsável pelo planejamento setorial e pela implementação das políticas públicas. E a agência reguladora, órgão independente e relativamente blindado de intervenções políticas, teria a competência de decidir assuntos de natureza técnica, dentre os quais a regulação econômica e a resolução de conflitos a ela associados. O fato de esses conflitos serem dirimidos por uma agência independente, blindada, ainda que parcialmente, de pressões políticas, seria um dos pilares para garantir a segurança almejada pelos investidores privados. Mas qual a relação desse arranjo com a estratégia de apelar para o Congresso Nacional diante de discordâncias das decisões da agência reguladora?
A estratégia de recorrer ao Congresso Nacional para aprovar uma lei que revê decisão de uma agência reguladora altera a estrutura de governança anteriormente apresentada: retira-se da função de árbitro um órgão com maior conhecimento técnico e, em tese, mais protegido de pressões políticas, e o substitui por um órgão de natureza política e sujeito a pressões variadas. Essa modificação nas competências das agências e do Congresso Nacional contradiz a visão de que o risco de interferência política na regulação e nos órgãos reguladores afasta investimentos privados e justifica uma agência reguladora independente. Esse novo arranjo também gera outras reflexões, tais como a necessidade de autonomia das agências reguladoras e de mandato para seus diretores; e reforça a visão de alguns agentes políticos de que o desenho e as competências das agências reguladoras devem ser rediscutidos. Em resumo, a estratégia de recorrer ao Congresso Nacional sinaliza discordância do arranjo de governança em vigor.
A reflexão apresentada neste artigo não tem como propósito legitimar teses que buscam afastar a atuação do Congresso Nacional como órgão fiscalizador em setores regulados, papel essencial diante da possibilidade de o Poder Executivo e os órgãos reguladores utilizarem instrumentos que distorcem os objetivos inicialmente estabelecidos para a política pública aprovada pelos representantes democraticamente eleitos pelos cidadãos; e nem busca defender o fim das agências reguladoras. Na verdade, a reflexão proposta almeja mostrar a importância de entendermos as contradições entre o discurso e a prática dos diversos atores envolvidos na formulação e execução de políticas públicas em setores regulados, as quais podem nos ajudar a identificar os necessários aperfeiçoamentos à governança desses segmentos econômicos.
No setor elétrico, por exemplo, em que identificamos várias situações de uso do Congresso Nacional como instância recursal de decisões da Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel), parece óbvio que esses aperfeiçoamentos são necessários. Basta observar as tarifas elevadas e as profundas distorções distributivas e no seu funcionamento, sintomas que apontam uma estrutura de governança incapaz de guiar os agentes econômicos em uma direção em que os objetivos das políticas públicas sejam alcançados. É hora, portanto, de refletirmos sobre qual governança queremos para os setores regulados.
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CONSULTOR LEGISLATIVO, DOUTORANDO EM POLÍTICAS PÚBLICAS PELA ENAP, MESTRE EM ECONOMIA PELO CEDEPLAR/UFMG, FOI SECRETÁRIO ADJUNTO DE ACOMPANHAMENTO ECONÔMICO DO MINISTÉRIO DA FAZENDA
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