05 de outubro, 2024

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Retrato antigo de um governo novo

Por Jorge J. Okubaro

Com seu chefe dominado por uma melancolia talvez inimaginável nos tempos em que se proclamava insensível aos sofrimentos e aos desassossegos com que a vida pública costuma acossar políticos responsáveis, o governo Bolsonaro terminou antecipadamente. Desde o anúncio oficial de sua derrota eleitoral, o presidente não participa de atos inerentes ao seu cargo nem toma decisões que lhe competem. Desistiu de governar, se é que em algum momento tenha tentado efetivamente governar sob um Estado Democrático de Direito. A diplomação, na semana passada, pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE) do presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva e do vice-presidente eleito Geraldo Alckmin representou o término formal do processo eleitoral, mas não do governo Bolsonaro, que se estenderá até o dia 31.

A vida ficou menos sobressaltada. A despeito de fanáticos ainda ocuparem áreas em frente a quartéis à espera de um golpe militar e de vândalos direitistas agirem com extraordinária violência, a vida sem governo Bolsonaro segue normal para pessoas normais. Ainda há, ressalve-se, temor de que algum ato de violência possa ser praticado até a posse do novo governo, em 1.º de janeiro.

Pouco se viu, das autoridades ainda no poder, mais do que medidas administrativas, ou algumas com conotação política para tentar reafirmar teses caras aos bolsonaristas. Entre elas está a decisão da maioria bolsonarista na comissão de mortos e desaparecidos políticos de extingui-la sem que tenha concluído seus trabalhos, 27 anos depois de sua criação. Referências a violações dos direitos humanos na ditadura sempre causaram repugnância em bolsonaristas e militares.

O poder de fato, porém, mudou de mão. Espertos políticos ávidos por facilidades dos governantes, que tanto apoiaram Bolsonaro e impediram a abertura de processos de impeachment do ainda presidente, já mudaram de lado. Disputam fatias do futuro governo Lula. Não há novidade nisso. Eles sempre foram assim. Ignorá-los poderia criar o primeiro, e imenso, problema para o futuro governo. Mas é preciso que haja limites nessa transação.

Um exemplo de como se dão as negociações é a tramitação da PEC da Transição. Quem mais tem votos no Congresso mais exige do futuro governo. A preservação, por algum meio, do chamado orçamento secreto é ponto central dessas negociações. Mas preenchimento de cargos públicos de relevância também faz parte dessas conversas.

É o governo eleito agindo como se governo efetivo já fosse, mas com velhas práticas.

Preocupa que o futuro governo tenha cara do passado, use métodos do passado e pouco tenha apresentado de novo. Em muitos casos, reconheça-se, voltar ao passado é absolutamente indispensável para reconstruir ou restabelecer estruturas, órgãos e programas vitais para ações do governo em áreas como diplomacia, meio ambiente, saúde, educação, apoio aos carentes, direito de minorias, direitos humanos e papel das Forças Armadas.

Mas como será estimulada a retomada do crescimento, o que será feito para recuperar a indústria, como será a política fiscal, como atuarão os bancos públicos? Operadores do mercado têm reagido mal aos nomes até agora conhecidos para os principais postos no futuro governo. Ressalve-se que eles costumam reagir mal a tudo que não corresponda a seus anseios e suas expectativas.

Neste caso, porém, alertas do presidente do Banco Central, Roberto Campos Neto, embasam, em tom sereno, mas duro, preocupações de parte do mercado. Dois desses alertas merecem ser mencionados. Créditos subsidiados, como os que o BNDES concedia nos governos petistas, trazem riscos e podem implicar benefícios indevidos. A eventual piora das contas públicas exigiria política monetária mais dura.

O endereço, aqui, é o próprio presidente eleito, Lula. Em encontro com catadores de material reciclável, Lula disse que não pode cuidar dos pobres se olhar a política fiscal. Pode. Cuidar dos pobres é tarefa obrigatória de um governante responsável, e faz parte das políticas clássicas do PT. Mas para isso não é preciso destroçar as finanças públicas. A sabedoria e a competência do governante estão em defender os pobres respeitando os limites que a receita pública impõe.

A mudança na Lei das Estatais para acomodar alguns nomes na direção de companhias controladas pelo governo, de sua parte, pode ser o caminho para o intervencionismo político na gestão dessas empresas e para barganhas de cargos.

Mas o mais preocupante é, na fotografia do novo governo, estarem em destaque velhos rostos que marcaram outras gestões petistas. Se eles continuarem tão velhos como seus retratos, talvez a preocupação do mercado financeiro tenha fundamento. Mas pode-se ter alguma esperança de que, como Lula em seu discurso no dia da vitória eleitoral, eles também tenham mudado. Se as circunstâncias, excepcionalmente adversas, mas por isso mesmo inspiradoras, os conduzirem para o bom caminho, melhor para todos. Temos, ainda, o direito de ter essa esperança.

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JORNALISTA, É AUTOR, ENTRE OUTROS, DO LIVRO ‘O SÚDITO (BANZAI, MASSATERU!)’ (EDITORA TERCEIRO NOME)

https://www.estadao.com.br/opiniao/jorge-j-okubaro/retrato-antigo-de-um-governo-novo/

 

 

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