15 de outubro, 2024

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Teto – o joio e o trigo

Fabio Giambiagi, O Estado de S.Paulo

É evidente que o País está passando por uma fase gravíssima de sua História. Não apenas é vítima de um “tsunami” devido aos efeitos do espraiamento do coronavírus, como assiste a uma perigosa escalada da tensão política. Nesse tipo de situação, os ânimos ficam à flor da pele e os países às vezes tomam decisões que depois, em momentos de maior calma, se revelam equivocadas. Quero aqui, nesse contexto, tratar do tema da regra do teto do gasto público.

Fui um defensor da medida, quando ela foi adotada, em 2016. Considero que é peça essencial do roteiro que levou o País a uma queda das taxas de juros, a partir de 2017, como nunca tínhamos visto no Brasil. Por outro lado, escrevi um artigo em 2019, com meu colega Guilherme Tinoco, publicado como Texto para Discussão do BNDES número 144, no qual defendi uma revisão da regra a partir de 2023. Por razões que não há espaço aqui para explicar, o cenário já tinha mudado antes da atual pandemia e, se em 2016 eu julgava que era possível conservar o teto intacto até 2026, desde 2018 estou convencido de que isso será impossível. Dito isto, porém, é essencial separar o joio do trigo e entender o que está em jogo, em momentos em que o País parece estar ficando de cabeça para baixo.

No pandemônio que se seguiu, neste ano de 2020, ao aparecimento do fenômeno do coronavírus no Brasil, no debate sobre a política fiscal necessária para combater os efeitos econômicos derivados desse drama apareceram diversas interpretações, acerca das quais é necessário aqui fazer alguns esclarecimentos. Eles são importantes para que o debate sobre o tema do teto não seja distorcido por alguns equívocos. Vamos aqui procurar contra-argumentar a três afirmações muito citadas nas últimas semanas.

1) “O teto causou uma redução dos gastos com saúde.”

Isso foi dito, com insistência, como forma de criticar a política econômica implementada depois de 2016. Até 2019, pelo menos, porém, isso não aconteceu. A despesa com saúde – além do gasto com os profissionais da área – se divide no componente obrigatório e no discricionário. A preços constantes de 2019 – utilizando o deflator do produto interno bruto (PIB) para inflacionar os dados de anos anteriores –, de fato a despesa obrigatória com saúde cedeu, de R$ 88,8 bilhões para R$ 86,1 bilhões entre 2016 e 2019. Porém, nesses mesmos três anos, a parcela discricionária da despesa com saúde aumentou de R$ 22,3 bilhões para R$ 29,2 bilhões. Isso significa que o total gasto com saúde se elevou de R$ 111,1 bilhões para R$ 115,3 bilhões, sempre a preços reais de 2019.

2) “A crise requer o uso de investimento como fator de políticas anticíclicas.”

Já disse que estou convencido de que o País terá de rever a regra do teto antes de 2026, entre outras coisas, pela deterioração que acarreta para o investimento público. Imaginar, porém, que este poderia reagir rapidamente em 2020, diante de uma contração da demanda como a observada no momento, é um equívoco. Entre a decisão, nesse caso, de gastar e sua implantação, precisa ser cumprido todo o ritual de a obra ter projeto, ser aprovada pelos órgãos competentes, ter os recursos empenhados, etc. Isso toma, na prática, muitos meses, sendo, portanto, incompatível com o tipo de reação imediata requerida pelas circunstâncias atuais.

3) “A regra do teto é incompatível com o apoio que a economia precisa ter numa situação crítica como a de 2020.”

Isso não é correto. A regra do teto, inscrita na Constituição, diz explicitamente que não se incluem na sua base de cálculo certas transferências constitucionais aos entes subnacionais, as despesas não recorrentes da Justiça Eleitoral com a realização de eleições e créditos extraordinários relacionados a despesas imprevisíveis e urgentes, como as decorrentes de comoção interna ou calamidade pública. Como sempre há alguma calamidade acontecendo em algum lugar do País, na média de 2017-2019 essas exceções ao teto alcançaram um valor de R$ 3 bilhões/ano. Nada impede que o mesmo critério seja adotado em casos como a necessidade incontestável de ampliar excepcionalmente as despesas com saúde, preservação do emprego e ajuda aos mais desfavorecidos, num quadro como o que estamos vivendo em 2020.

Portanto, é justo reconhecer que a regra do teto, da forma como foi estabelecida na PEC aprovada em 2016, não sobreviverá com essa rigidez até 2026. Porém seria importante que a ideia central de contenção do gasto, que é a essência dessa tentativa de controle, se mantenha em caso de revisão futura, evitando “jogar fora o bebê junto com a água do banho”.

Rediscutir a regra do teto é válido num contexto em que a) haja um acordo político em defesa da redução do déficit público ao longo da década, para algo em torno de 3% do PIB, num programa plurianual; e b) se crie espaço para o investimento, de forma consistente com a preservação do rigor fiscal. Nada disso tem que ver com o quadro de 2020, que pode ser enfrentado com gastos “extrateto”, nos termos já permitidos pela regra aprovada em 2016.

ECONOMISTA

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