“No meu trabalho anterior eu não tinha a minha identidade de gênero respeitada. Por mais que todas as vezes eu corrigisse o meu gestor ao se referir a mim com pronomes femininos e pelo meu nome de batismo, a indiferença se mantinha”.
Esse não é um caso isolado, pelo contrário, é apenas um dos desafios enfrentados por muitos travestis, mulheres e homens transexuais ao ingressarem no mercado de trabalho.
A situação aconteceu no início da jornada profissional de Peralta Ferreira. Embora tivesse concordado que o nome civil fosse utilizado em burocracias da empresa, a identidade de gênero do funcionário seria respeitada no dia a dia.
“Estou no processo de mudança da minha documentação, mas o antigo gestor fazia questão de me chamar pelo meu nome civil. A empresa não foi pega de surpresa, sabia que sou um homem trans e queria ser chamado pelo meu nome social”, diz.
O descaso não foi apenas da alta gestão. Mesmo formalizando a reclamação ao RH da empresa, além de nenhuma atitude ter sido tomada, a situação foi agravada com a promoção do então gerente. Peralta decidiu deixar o emprego.
“Ao se omitirem àquelas atitudes, a empresa foi conivente com um ‘líder’ que usava equivocadamente a religião como cortina de fumaça para justificar o preconceito. Foi a primeira vez que percebi de fato os desafios que teria de enfrentar no mercado de trabalho”, desabafa.
Levantamentos mostram que o mercado de trabalho para pessoas transexuais e travestis ainda está aquém do ideal.
A pesquisa foi realizada pelo projeto TransVida, do Grupo pela Vidda, com apoio do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, e condução do antropólogo e ativista Fabrício Longo.
O relatório aponta que apenas 15% dos participantes relataram ter um trabalho com carteira assinada, enquanto 15,6% têm trabalho autônomo formal e 27,2%, trabalho autônomo informal.
Mais da metade (52,7%) dos entrevistados afirma que é o único trabalhador transexual da empresa, e somente 25,9% dizem que há entre duas e dez pessoas trans entre os funcionários.
Questionados sobre as formas de discriminação ou violência que sofreram ou testemunharam no trabalho, 27,6% apontaram a própria transfobia; 14,2% o racismo; e 9% a homofobia.
O desrespeito ao nome social foi relatado por 16,4% das pessoas entrevistadas na pesquisa e 6% já foram impedidos de usar o banheiro correto.
Segundo outro levantamento, da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra), 90% da população transexual e travesti têm a prostituição como fonte de renda e alternativa de sobrevivência.
Sociedade organizada apenas para homens e mulheres
Mulher trans, preta e nordestina, a psicóloga Vitor Martins avalia que a forma de pensamento social é a base para a organização da sociedade.
Para ela, todos que diferem da norma dessa compreensão de gênero vão sofrer os efeitos de viver numa sociedade que não foi pensada e construída para outros ou múltiplos tipos de identidade.
Os espaços afiançam apenas a existência de homens e mulheres. Isso quer dizer que travestis, homens e mulheres trans vão enfrentar mais barreiras para o acesso ao sistema de saúde, educação e também ao mercado de trabalho.
“Temos uma sociedade organizada em volta de uma compreensão de gênero que é binária. Nasce homem, tem que morrer homem. Nasce mulher, tem que morrer mulher. E isso define papéis e formas de organização social”, explica.
Outro desafio do mercado de trabalho está relacionado ao poder de acesso das pessoas. Para Vitor, a falta de oportunidades de emprego precisa ser analisada à lupa. “Não existe acesso a boas colocações, sem falar dos níveis de escolarização”.
Além do sustento básico, o acesso à renda garante conhecimento, cultura, lazer e bens de consumo. Em uma sociedade capitalista, essa conta não fecha. O dinheiro vem do trabalho remunerado, mas o mercado continua fechando portas para esse grupo de pessoas.
“Falta de acesso ao dinheiro. Uma das principais barreiras que as pessoas trans vivenciam na sociedade, é porque elas não têm onde morar. Elas não têm o que comer e o que vestir. Como poderão buscar conhecimento se lhes falta o mínimo para subsistência?”, explica Vitor.
Qualidade do trabalho subjugada à identidade de gênero
Reconhecida pelo LinkedIn como um dos perfis mais relevantes sobre Diversidade e Inclusão (D&I), Vitor também recebeu o prêmio Young Leader 2021 do Instituto Anga, que celebra jovens líderes que impactam positivamente em organizações e na sociedade brasileira.
Apesar do currículo com experiência e fluência em vários idiomas, reconhecimento e a coleção de prêmios, a psicóloga enfrentou diversas barreiras, especialmente por ter sua capacidade subjugada a sua identidade de gênero – preconceito que ela avalia ser vivenciado pela maioria das pessoas LGBTQIAP+.
“Sempre estive dentro do espectro de área feminina demais. Era vista como um homem com ‘trejeitos femininos’. A expectativa da sociedade é de que homens sejam homens e mulheres sejam mulheres. Isso também produz uma implicação de que eu não estou cumprindo com o meu dever – o que também se estende ao mercado de trabalho”, relata.
Ela não acredita que isso vai deixar de acontecer em um contexto próximo. Independente das competências ou do grau de visibilidade que um profissional trans possa atingir, a qualidade do seu trabalho sempre estará subjugada à identidade de gênero e outros marcadores sociais.
Em sua análise, quando a qualidade desse trabalho é atestada com reconhecimento e métricas – como no caso dela, com prêmios e visibilidade na mídia – os resultados acabam sendo colocados no que ela chama de “caixa de prepotência”.
Isso acontece com recorrência, segundo Vitor, porque não é uma expectativa das pessoas encontrarem mulheres trans e negras que sejam seguras de si, sem nome no Serasa e com ótimos níveis de instrução.
“Quando eu sou boa demais, certamente passarei a imagem de ser prepotente, egoísta, egocêntrica ou algo do tipo. Porque a imagem que a maior parte da sociedade tem de uma pessoa trans ou travesti é sempre de uma coitada, sujeita na sociedade”, reforça.
Ao encontrar uma pessoa desse grupo que fora desse enquadre social, a sociedade é forçada a pensar as identidades nos espaços, a partir de uma outra ótica e lidando com as próprias frustrações e expectativas dela em relação ao outro.
“A sociedade passa a entender que a falta de pessoas trans e travestis em posições de liderança, com bons salários e níveis de instrução, acontece por barreiras da própria cisheteronormatividade – e não porque nós não temos capacidade de exercer esses papéis e estar nesses lugares”, complementa.
Atualmente, Vitor lidera a área de Diversidade e Inclusão da Swap – uma startup de infraestrutura de tecnologia financeira fundada em 2018 que oferece integração de pagamentos com foco nos mercados de despesas corporativas e benefícios.
Assumindo um cargo de liderança, a missão da psicóloga na Swap será implementar uma agenda robusta de D&I, pensando em ações, estratégias, produtos e serviços inclusivos.
A visibilidade trans em empresas
Além da Swap, outras empresas estão investindo e priorizando a Diversidade e Inclusão para conquistar e reter profissionais qualificados. O Peralta, homem trans vítima de preconceito que não teve sua identidade de gênero respeitada?
A escolha de uma empresa inclusiva mudou a sua perspectiva de vida profissional. Hoje, ele trabalha como Analista de Sucesso do Cliente na Aprova Digital, govtech que oferece soluções para modernizar órgãos públicos.
“Aqui na Aprova sempre fui tratado pelo meu nome social e senti a diferença de tratamento desde o início. Fui acolhido, respeitado. Apesar de ser o mínimo que se espera de qualquer empresa ou gestor, é importante evidenciar as organizações que ajudam no combate ao preconceito”, conta o analista.
Peralta afirma que é a primeira vez que se sente confortável em falar abertamente sobre o tema e ajudar outras pessoas, sem medo de sofrer retaliações por parte do empregador.
Clarissa Ariel, que atua na área de Recursos Humanos desde 2011, com vivência em empresa multinacional e atualmente Head of People da Aprova Digital, destaca que mudar a cultura organizacional e a filosofia da empresa é o primeiro passo para ampliar as oportunidades.
“Diversidade é uma riqueza e não um problema. Precisamos assumir uma postura ativa na busca e no desenvolvimento de talentos trans, e de outros grupos minorizados. São profissionais que vão trazer novas visões de mundo e diferentes experiências de vida aos times”, avalia Clarissa.
Inclusão de dentro pra fora!
Outra empresa que preza pela diversidade e inclusão é a fintech Z1, que oferece serviço de conta digital para adolescentes. O objetivo da empresa é introduzir a educação financeira na vida dos adolescentes desde cedo, para mudar a forma como esse público – que já nasceu na era digital – lida com dinheiro.
Criada em 2019, a preocupação da Z1 com a Diversidade e Inclusão também ultrapassa as paredes da empresa. Por se tratar de um público muito jovem, majoritariamente da geração Z, com até cerca de 24 anos, o tratamento também é diferenciado.
Tanto internamente quanto para seus clientes, a utilização da linguagem neutra é uma realidade. A atenção para que todos sejam tratados como quiserem e se sintam incluídos e acolhidos, é gerenciada cuidadosamente pela fundadora e líder do Núcleo de Diversidade e Inclusão, Aine Tadini.
Mulher trans e mãe de uma bebê de oito meses, ela está há dez meses na Z1. Engenheira elétrica, com formação em Psicanálise Clínica e especialista em Marketing, a profissional se destacou em empresas conhecidas internacionalmente e luta ativamente pela inclusão no mercado de trabalho.
Aine considera que o mercado de trabalho ainda é muito preconceituoso e carece de ações mais robustas para garantir a inclusão. Segundo ela, mesmo em grandes empresas que possuem orçamento para trabalhar a D&I, as estratégias são ínfimas e acontecem vagarosamente.
Muitas vezes, com lideranças conservadoras e que compreendem apenas a binaridade de gênero, as barreiras se intensificam e o preconceito sobre grupos que não seguem o padrão social aceitável gera consequências devastadoras.
“Em uma das empresas que atuei e que se diz inclusiva, a diretora era completamente preconceituosa e criava situações desagradáveis durante reuniões, na frente de qualquer pessoa, sem se importar como aquilo estava afetando os funcionários”.
Aine desenvolveu burnout e necessitou de acompanhamento para conseguir se restabelecer emocionalmente no ambiente de trabalho – como se já não fosse ultrajante o preconceito sofrido fora dele.
“Tudo o que a gente faz aqui é pensando em diversidade. Depois de implantar a área de D&I, também criei o comitê de diversidade, grupos de afinidade, trouxe palestras e treinamentos de liderança inclusiva com todo o time de líderes. As vagas são analisadas cuidadosamente para garantir que sejam inclusivas”, explica Aine.
Além dessas estratégias, a profissional também criou um programa de mentoria para pessoas minorizadas, com treinamentos e capacitação nas áreas de tecnologia e produto que duram em média seis meses. O intuito é possibilitar que os profissionais possam crescer dentro da empresa e assumir novos postos de trabalho.
Com as experiências que enfrentou, Aine sabe a importância de fazer diferente e possibilitar que travestis, mulheres e homens trans possam ser respeitados, incluídos e valorizados no mercado de trabalho.
Autor(a): Deyvid Alan
Fonte: Mundo RH
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