A única solução para a governabilidade é o presidente eleito entender-se com os cardeais do Legislativo e do Judiciário
O parágrafo único do artigo 1º da Constituição de 1988 define que “todo poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição”. O arcabouço da República está no art. 2º, onde se diz que “são poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário”.
Pois bem. Dos representantes eleitos, o único que recebe majoritariamente o poder do povo é o presidente da República. A ele cabe, portanto, determinar as prioridades do governo, negociá-las com o Legislativo e sugerir o recrutamento das autoridades não eleitas ao Senado Federal.
O argumento de que, como um terço do eleitorado potencial costuma votar em branco ou não comparece, deslegitima o pleito é falacioso. Primeiro, porque votar em branco ou não votar não é um ato de rebeldia, mas de covardia.
Segundo, porque com 13 candidatos que cobrem até espaços ideológicos imaginários é pouco provável que não exista um “menos pior” para merecer o voto.
Terceiro, porque quem se recusa a votar despreza a sua cidadania política. É um desinteressado na ordem social. Deixa de contar na sociedade democrática. Portanto, o candidato que tiver um terço dos votos mais um voto é o legítimo representante e portador do poder do povo no prazo fixo estabelecido. Ele fica, obviamente, sujeito ao controle de “pesos e contrapesos” sob a guarda do Supremo Tribunal Federal (artigo 102 da Constituição).
O Supremo é sacralizado na Constituição como poder moderador. A maior honra que a nação pode oferecer a um cidadão é escolhê-lo para tal tribunal, onde 11 brasileiros acima de qualquer suspeita e com o domínio da lógica do direito são transformados em semideuses para garantir a todos o mesmo respeito e a mesma proteção dos seus direitos fundamentais.
Por isso, se realmente queremos o Estado de Direito, temos de respeitar a razoabilidade de suas decisões, mesmo quando discordamos delas. Quem acredita que “a voz do povo é a voz de Deus” deve ser lembrado da turba que pediu, em 8 de maio de 1794, a cabeça do grande Lavoisier porque “o povo não precisa de ciência, precisa de pão”, ou vê-la, em preto e branco, no Red-Color News Soldier, do magnífico Li Zensheng, o famoso retratista da imbecilidade da Revolução Cultural do facínora Mao Zedong.
A lei eleitoral em vigor foi feita sob medida para a reprodução do mesmo Congresso. Continuará constituído pelas mesmas corporações: a dos “funcionários públicos” (130 deputados); a da famosa classe “laboriosa” (rural e urbana, 150 deputados) e a dos “religiosos” (80 deputados e em crescimento, num Estado laico). Formam coalizões invencíveis na defesa dos seus “direitos” mal adquiridos.
A disfuncionalidade institucional é generalizada. A classe “laboriosa” votou o incrível Refis e o assombroso Funrural contra o regimento da Casa que impede o voto em causa própria. A Assembleia do Rio de Janeiro vetou o acordo com a União que determinou a falência do Estado, o que vai parar no STF. O fabuloso desastre dos caminhoneiros pousou no STF, assim como as renovações dos contratos das ferrovias. Nada funciona. Só o abuso de poder. E tudo é empurrado sobre o STF, com a provável intenção de desgastá-lo.
Na minha reconhecida incompetência constitucional, tenho um sentimento estranho. A Emenda Constitucional nº 95, de 2016, que estabeleceu o “teto dos gastos” (que tem muitas virtudes e alguns problemas, mas que a maioria dos candidatos quer eliminar) restringiu a liberdade da elaboração dos orçamentos do Legislativo e do Judiciário. Suspeito que eles agora estão, também, submetidos ao “teto”. Temo chegarmos ao paroxismo: o STF ter de julgar se sua decisão de corrigir seus salários é constitucional. Convenhamos: como está hoje, o Brasil é inadministrável.
A única solução para restabelecer a governabilidade do País é o presidente eleito, o único majoritariamente representante do povo, convocar um “concílio” com os outros cardeais do Legislativo e do Judiciário para lembrá-los de que “somos poderes da União independentes entre si, mas harmônicos”, principalmente em matéria orçamentária, porque a caixa é única. Carta Capital.
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