Notas & Informações, O Estado de S.Paulo
As Forças Armadas desfrutam do merecido apreço da maioria dos brasileiros, como há tempos atestam pesquisas de opinião. Merecido porque, desde a redemocratização do Brasil, souberam manter-se à margem do desgastante processo político, limitando-se às suas elevadas funções constitucionais. “Se a política entra pela porta da frente de um quartel, a disciplina e a hierarquia saem pela porta dos fundos”, disse, com razão, o vice-presidente Hamilton Mourão, general da reserva, ao comentar o movimento grevista da Polícia Militar do Ceará, em março passado.
O comportamento do presidente Jair Bolsonaro, contudo, vem impondo um complexo desafio para as Forças Armadas. O presidente Bolsonaro, ele mesmo um oriundo dos quadros do Exército, cercou-se de militares em seu gabinete, alguns inclusive na ativa – como o ministro da Secretaria-Geral de Governo, general Luiz Eduardo Ramos.
Tornou-se inevitável, assim, uma associação entre a imagem das Forças Armadas e a do governo, mesmo que a maioria dos militares que hoje servem ao presidente seja da reserva e mesmo que a cúpula das Forças reafirme constantemente seu distanciamento da cozinha política do Palácio do Planalto. Mais do que isso: em muitos momentos, Bolsonaro se refere às Forças Armadas como “as nossas Forças”, modo nada sutil de indicar uma unidade de pensamento e ação entre ele e os quartéis.
No domingo passado, em mais um de seus comícios de caráter golpista, o presidente foi ainda mais longe e, depois de dizer que “acabou a paciência” em relação àqueles que, seguindo a Constituição, impõem limites a seu poder, declarou que “as Forças Armadas estão do nosso lado”.
Com isso, o presidente Bolsonaro explicitamente tenta vincular seu governo às Forças Armadas e, pior, em oposição ao Judiciário e ao Congresso – cujo fechamento a militância bolsonarista defende dia e noite, estimulada pela retórica agressiva de seu líder. Ante o mal-estar causado pelas declarações autoritárias de Bolsonaro, o Ministério da Defesa teve de emitir uma nota em que afirma que “Marinha, Exército e Força Aérea são organismos de Estado” – o que seria uma platitude se o presidente não fosse Jair Bolsonaro, que confunde o Estado com o quintal de sua casa.
Bolsonaro cercou-se de militares na presunção de que estes lhe dedicariam absoluta lealdade, à moda dos quartéis. Essa exigência ficou clara com a demissão, em junho do ano passado, do general Carlos Alberto dos Santos Cruz, então ministro da Secretaria-Geral de Governo, depois que este ousou atravessar o caminho do vereador Carlos Bolsonaro, filho do presidente e eminência parda do regime. O episódio serviu para mostrar aos demais ministros, inclusive os militares, que ninguém no governo pode colocar os interesses de Estado acima dos interesses do clã Bolsonaro.
Assim, os militares que aceitaram cargos no governo, tidos como os “adultos na sala”, isto é, aqueles que temperariam o comportamento explosivo e errático do presidente, tornaram-se instrumentos de Bolsonaro em seu projeto autoritário de poder. O passo seguinte, no roteiro bolsonarista, é enredar as Forças Armadas.
Certamente é do mais absoluto interesse dos comandantes militares do País preservar a imagem de respeito e dedicação à Constituição, sem falar nos princípios civilizatórios. Se assim é, urge deixar claro que um presidente que ataca a imprensa diariamente – e manda jornalistas calarem a boca, como fez ontem com duas repórteres que insistiram, ora vejam, em lhe fazer perguntas – não representa os valores dos quartéis; urge deixar claro que Bolsonaro, ao desdenhar seguidamente dos mortos na pandemia de covid-19, agride princípios humanitários compartilhados pelos militares; urge deixar claro que tratar os Poderes Judiciário e Legislativo como inimigos e estimular manifestações golpistas, como fazem Bolsonaro e os bolsonaristas a todo momento, ofende a ordem democrática que os militares juraram respeitar; urge, por fim, deixar claro que as grosserias de Bolsonaro demonstram que ele nada aprendeu nas aulas sobre respeito e civilidade ministradas nas escolas militares. É, no modelo do general Ernesto Geisel, “um mau militar”, que, é bom não esquecer, deixou pela porta dos fundos esta honrada profissão.
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