28 de março, 2024

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Uma democracia capenga

Foto: Fabio Rodrigues Pozzebom/Agência Brasil

Notas & Informações, O Estado de S.Paulo

O Orçamento público talvez seja o termômetro mais bem calibrado para indicar a “saúde” da democracia representativa. É claro que o sufrágio universal, o voto direto e secreto e a realização de eleições periódicas estão na raiz do processo democrático. Mas, ao fim e ao cabo, de que vale tudo isso se a representação política resultante das escolhas dos eleitores nas urnas é pervertida na elaboração e execução de um Orçamento que nem de longe reflete as grandes prioridades nacionais? A democracia, para gerar os frutos a que se destina, requer muito mais do que o indispensável respeito aos seus atributos formais.

Em última análise, o Orçamento é o esteio da administração pública, que se presta, antes de tudo, a cuidar da boa alocação dos recursos públicos de modo a melhorar a qualidade de vida dos cidadãos. A Constituição determina que cabe ao Poder Executivo planejar e executar essa alocação, após autorização e sob fiscalização do Poder Legislativo. O que se vê, no entanto, é que essa parceria constitucional fundamental foi transformada em verdadeiro conluio entre um presidente da República extremamente fraco do ponto de vista moral e político e um grupo de parlamentares ávidos por capturar recursos do Orçamento em dimensão poucas vezes vista antes na história republicana. Os efeitos dessa tempestade perfeita serão sentidos mesmo após o fim do governo Bolsonaro e da atual legislatura.

Nesse sentido, a democracia representativa no Brasil está doente porque o Orçamento foi capturado por uma casta que o converteu em instrumento de compra de apoio político e enriquecimento ilícito. O “orçamento secreto”, escândalo revelado pelo Estadão no ano passado, é a quintessência do patrimonialismo que há séculos se ergue como muralha intransponível entre o Brasil e seu futuro mais auspicioso.

Se, nos últimos anos, o “orçamento secreto” tem servido para o presidente Jair Bolsonaro comprar o tênue apoio de um grupo de parlamentares a fim de evitar a sua cassação – só isso explica a permanência de Bolsonaro no cargo após cometer crimes de responsabilidade em série –, neste acirrado ano eleitoral as emendas de relator (RP-9), base do esquema, também têm servido para comprar o apoio de prefeitos, tidos como grandes cabos eleitorais.

Uma reportagem do Estadão revelou que prefeituras de diferentes regiões do País negociaram com o Palácio do Planalto a distribuição de R$ 13,1 bilhões oriundos do “orçamento secreto”. Essa dinheirama deverá ser alocada em redutos eleitorais de parlamentares aliados de Bolsonaro, que, assim como o presidente, disputam a reeleição. O objetivo é atrair o apoio de prefeitos de pequenos e médios municípios, onde o gestor municipal tem muito mais poder de influência sobre a escolha dos eleitores.

A prática é inconstitucional e imoral porque, como já foi dito, perverte a representação política ao desvirtuar a alocação de recursos públicos para o atendimento de demandas de aliados do governo de turno, sem qualquer transparência, equidade ou critérios objetivos. Além disso, porque tem o objetivo escancarado de desequilibrar a disputa eleitoral, favorecendo algumas candidaturas em detrimento de outras por meio da alocação privilegiada de recursos do Orçamento.

É improvável que algo aconteça para barrar essa farra com o dinheiro dos contribuintes. O procurador-geral da República, Augusto Aras, já deu mostras cabais de sua indisposição para investigar os malfeitos do atual governo. Por sua vez, os presidentes das Casas Legislativas, o senador Rodrigo Pacheco (PSD-MG) e o deputado Arthur Lira (PP-AL), dificultam como podem a transparência sobre tudo o que envolve o “orçamento secreto”. Só no dia 9 passado o presidente do Congresso cumpriu decisão do Supremo Tribunal Federal de informar à Corte detalhes sobre a distribuição das emendas de relator. Mas ainda não se pode dizer que tudo foi esclarecido, pois aos parlamentares era “facultado” colaborar enviando essas informações. Ou seja, respondeu quem quis.

Ou acaba o “orçamento secreto” ou a sociedade seguirá experimentando uma democracia capenga.

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