Por Notas & Informações
Se as eleições são a raiz do processo democrático, o Orçamento público é sua culminação. Através dele, em tese, os representantes eleitos retribuem os votos dos cidadãos alocando seus recursos com isonomia e eficiência para a melhor oferta dos serviços públicos. Mas, na prática, o Orçamento no Brasil caminha para o pior dos mundos: gastos engessados e investimentos arbitrários.
Por um lado, a negligência dos representantes em promover reformas tem comprometido cada vez mais as despesas com o custeio de servidores e benefícios previdenciários e sociais. Em 2008, os gastos obrigatórios da União representavam 85% dos dispêndios. Hoje são 93%. Por outro lado, com o aumento exponencial das emendas parlamentares, a parcela diminuta dos gastos discricionários, fundamentalmente com investimentos, é alocada de maneira cada vez mais pulverizada, arbitrária e opaca.
A fim de promover a colaboração entre os Poderes eleitos no emprego dos recursos públicos, a Constituição previu a possibilidade de emendas parlamentares na proposta orçamentária enviada pelo Executivo para que os congressistas orientassem recursos discricionários às necessidades das populações locais. Mas as disfunções estruturais do chamado “presidencialismo de coalizão”, contingencialmente agravadas por debilidades políticas dos governos de turno, têm desvirtuado esse princípio.
Enquanto a dotação e as modalidades de emendas se multiplicavam em níveis inauditos em comparação com outras democracias, os critérios de alocação e mecanismos de fiscalização eram desmontados. O exemplo mais aberrante foram as emendas RP9, que conferiram ao relator do Orçamento imensos poderes para distribuir recursos a aliados do governo sem qualquer transparência. Esse orçamento “secreto” foi declarado inconstitucional pela Suprema Corte, mas o governo e seus aliados têm ensaiado formas de reciclá-lo.
Outro exemplo são as “transferências especiais” (alcunhadas emendas “Pix” ou “cheque em branco”), pelas quais os parlamentares repassam a governadores e prefeitos recursos que eles podem gastar praticamente como bem entenderem.
Ao contrário das modalidades originais de emendas, como as individuais ou de bancada, as de relator e as “Pix” são distribuídas sem transparência, critérios técnicos ou equidade. As políticas públicas são degradadas, porque os recursos são alocados sem planejamento. A pressão fiscal cresce, porque eles são drenados das políticas setoriais administradas pelos ministérios. O risco de corrupção aumenta, porque eles são alocados e geridos sem transparência. E a competição democrática é distorcida, porque são canalizados aos redutos eleitorais dos parlamentares.
Um levantamento do Instituto Nacional de Orçamento Público reportado pelo Estadão ilustra esses efeitos. Uma das poucas restrições que ainda imperam sobre as emendas “Pix” é a determinação constitucional de que pelo menos 70% devem ser destinados a investimentos e no máximo 30%, ao custeio. Mas no ano passado, período de campanha eleitoral, pelo menos R$ 286,7 milhões em “transferências especiais” de 162 parlamentares descumpriram essa disposição. A manobra consistiu em concentrar o custeio em alguns municípios, deixando investimentos para outros. Em muitas prefeituras, não raro governadas por familiares dos parlamentares, os recursos foram usados para abastecer veículos ou realizar festas e eventos, em detrimento de investimentos, como em obras ou equipamentos.
Uma portaria do governo determinou que a partir de 2023 a proporção de 70% passe a ser respeitada em cada indicação, e não só nas emendas totais. É um passo ainda tímido. Para que as emendas em geral sejam moralizadas e racionalizadas, satisfazendo os propósitos do constituinte e, assim, os princípios da impessoalidade, da publicidade, da moralidade e da eficiência, será preciso mais. Um bom começo seria condicionar a sua distribuição à aprovação pelas comissões temáticas da Câmara e Senado. Isso em tese garantiria a sua inserção em uma estratégia integrada dos investimentos da União conforme um filtro técnico. É o mínimo que se espera na gestão do Orçamento.
https://www.estadao.com.br/opiniao/a-crescente-degradacao-do-orcamento-publico/
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