Roberto Livianu, O Estado de S.Paulo
Esta é uma carta aberta ao presidente eleito nas eleições de outubro, de forma soberana, pelo povo brasileiro, por meio das urnas eletrônicas.
A partir de 2023, a missão de governar o Brasil será das mais espinhosas que já teve na vida. Espera-se de sua parte coragem, integridade, lealdade a seu povo e disposição para enfrentar os graves e complexos desafios dos próximos quatro anos.
O primeiro passo – a campanha – deve ficar para trás, junto com o nós contra eles. O Brasil não suporta mais tanto ódio e intolerância. A maioria dos votos o levará ao poder, dentro da lógica democrática. E esta mesma lógica exige que o poder seja exercido olhando por todos, incluindo os que não votaram em si.
É necessário planejar políticas públicas como de saúde e saneamento básico com impessoalidade e prevalência do interesse público. Chega de improviso, pensando apenas em deixar marca pessoal. É vital o compromisso com a continuidade, independentemente de quem for o presidente a partir de 2027. Construa isso desde o começo.
O núcleo de nossos problemas mais agudos é a dilacerante desigualdade social. Somos a décima economia do planeta, mas estamos entre os dez países que têm pior distribuição de riqueza, o que precisa ser enfrentado com a reforma tributária e muitas ações concatenadas além da certeza de que só teremos resultados em décadas.
Os 33 milhões de famintos devem ser prioridade. De que adianta termos triplicado a expectativa de vida de 25 anos para 75 anos e termos reduzido a mortalidade infantil de 430 para 15 por 100 mil habitantes, 200 anos após nossa independência, se tanta gente ainda está faminta?
A educação de alto nível é privilégio dos abastados, que podem matricular seus filhos em colégios de luxo, o que retroalimenta a desigualdade social. Para as classes desfavorecidas, a educação pública padece, com insensíveis cortes de verbas e metodologias arcaicas, impondo-se uma verdadeira revolução nas próximas duas décadas para reposicionar o Brasil perante o mundo, oferecendo educação pública integral de excelente qualidade, como fez a Coreia do Sul.
Nosso meio ambiente e seus biomas foram lamentavelmente desprotegidos pelo respectivo ministério nos últimos anos. Ele vem sendo alvo de ações predatórias criminosas cada vez mais ousadas, denunciadas por heróis como o jornalista Dom Phillips e o ativista Bruno Araújo, que ofereceram a vida pela defesa da Amazônia. É imperioso retomar como prioridade sua proteção na agenda nacional.
Passaram-se 90 anos desde a conquista do direito de voto pelas mulheres no Brasil, mas apenas 15% das cadeiras do Congresso Nacional eram delas em 2018. Tomara que nestas eleições de 2022 isso melhore, o que acho pouco provável. Lute para serem asseguradas 30% das cadeiras para elas, pois a cultura do patriarcado é implacável, assim como são a misoginia e o machismo. Nossos números do feminicídio são pornográficos.
É necessário ser habilidoso para reconstruir as condições de geração de emprego e renda para o povo. Para isso, é essencial saber dialogar com o mundo empresarial e com os trabalhadores, recuperando pontes, além de ter sábias políticas econômica e de relações internacionais para conseguir navegar nos mares revoltos que enfrentaremos nos próximos anos.
Tantos anos depois da abolição da escravidão, racismo e intolerância vivem de todas as formas. Precisam ser enfrentados como bandeira efetiva. Basta de hipocrisia e de fingir que o problema não existe.
São cerca de 20 mil cargos de confiança, apenas em nível federal. Nos Estados Unidos, são 8 mil. Coibir a cultura do compadrio, o nepotismo, o clientelismo e as oportunidades para aparelhamento do Estado deve ser preocupação fundamental – alicerçou a edição da Lei das Estatais (Lei n.º 13.303/16), a ser preservada, em prol da eficiência das empresas públicas. Nova lei pode estabelecer requisitos mínimos para evitar abusos na contratação de pessoas.
Igualmente, não faz mais sentido, diante da isonomia constitucional, o instituto do foro privilegiado, que serve de escudo para quase 55 mil autoridades no Brasil. Seu fim foi aprovado no Senado e em todas as etapas na Câmara, dependendo de votação no plenário. É necessário liderar essa iniciativa, para extinguir este escombro, que só serve aos interessados na impunidade e na ineficiência da Justiça.
O orçamento secreto desafia o interesse público e exige tenacidade para ser vencido, assim como a reeleição para o Executivo e a eterna reeleição para o Legislativo; a reforma político-partidária, as barreiras à prisão em segunda instância e às candidaturas independentes, admitidas em 90% das democracias ocidentais. Chega de apagões de dados, abusivos decretos de sigilo por 100 anos e hostilidades a jornalistas!
Se 55% dos brasileiros não sabem como denunciar corrupção, como detectou em pesquisa recente o Instituto Não Aceito Corrupção, é porque não temos aqui política pública anticorrupção e, seguramente, não podemos enfrentá-la com receitas caseiras. O Brasil está farto de oportunistas de plantão que colocam capa e se dizem super-heróis para, depois, irem pedir voto em eleição. Assuma essa responsabilidade de verdade e construa esta política pública.
Esta carta se destina a quem vai dirigir a Nação e tenta transmitir ao futuro presidente a expectativa média de um cidadão brasileiro comum.
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PROCURADOR DE JUSTIÇA NO MPSP, DOUTOR EM DIREITO PELA USP, ESCRITOR, PROFESSOR, PALESTRANTE, É IDEALIZADOR E PRESIDENTE DO INSTITUTO ‘NÃO ACEITO CORRUPÇÃO’
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