O teto dos gastos públicos foi aprovado depois de uma grande campanha de marketing do governo Michel Temer (MDB-SP). A promessa era que estabelecer um máximo para os gastos públicos faria o país voltar a crescer e ficar em dia com suas contas. Na prática, a emenda constitucional congelou os gastos públicos nos níveis de 2016 e só autorizou que eles fossem corrigidos pela inflação. Sem crescimento real, portanto, pelos próximos 20 anos.
A Justiça do Trabalho sofre especialmente com isso, afirma o desembargador José da Fonseca Martins, presidente do Tribunal Regional do Trabalho da 1ª Região (RJ). “Falta dinheiro para fazer frente a qualquer coisa”, diz, em entrevista à ConJur.
“Do nosso orçamento, cerca de 87% está comprometido com a folha de pagamento e com os benefícios sociais. Não sobra praticamente nada para fazer a administração diária da máquina.”
Martins foi eleito presidente do TRT da 1ª Região em novembro de 2018 e fica no cargo até dezembro de 2020.
Leia a entrevista:
ConJur — Quais são seus objetivos na presidência do TRT-1?
José da Fonseca Martins — Primeiro, fazer uma administração colegiada. Ouvir todos, na medida do possível. O objetivo é, ao final dos dois anos, termos um tribunal unido em cima de determinados princípios — que nada mais são que aqueles princípios focados no bem do jurisdicionados, dos consumidores do Judiciário.
A segunda questão é implementar soluções alternativas de resolução de conflitos, como conciliação, mediação e arbitragem. Temos aqui a Cejus, uma unidade focada na área de conciliação. Hoje a Cejus tem uma atuação restrita a um número determinado de varas e fica fora do tribunal. Pretendemos transferi-la para a sede do tribunal para que possamos atender às demandas de todas as varas. A nossa escola judicial vai implementar um curso de especialização na área de mediação. E vamos convidar mais juízes aposentados para atuar como conciliadores e mediadores. E isso a custo zero para o tribunal. É uma forma de eles contribuírem com a experiência que acumularam como magistrados.
ConJur — Como está o orçamento do tribunal?
José da Fonseca Martins — Falta dinheiro para fazer frente a qualquer coisa. Estivemos recentemente no Tribunal Superior do Trabalho, e isso não é um problema só do TRT-1, mas de todo o Judiciário. A PEC do Teto de Gastos congelou os orçamentos por 20 anos. A partir de 2019, o orçamento passa a ser o que era em 2016 corrigido pelo IPCA. Isso torna absolutamente inviável o funcionamento da máquina. Do nosso orçamento, cerca de 87% está comprometido com a folha de pagamento e com os benefícios sociais. Não sobra praticamente nada para fazer a administração diária da máquina. A situação está muito complicada. Estamos com um número excessivo de funcionários que se aposentaram ou que estão à beira da aposentadoria. Cada vez que se fala em reforma da Previdência é uma enxurrada de funcionários que se aposentam. E estamos impedidos de fazer concursos públicos para reposição deles. Estamos em um processo crescente de perda de mão de obra.
ConJur — Como a reforma trabalhista impactou o TRT-1?
José da Fonseca Martins — Existem dois pontos nisso que a gente chama de reforma trabalhista: a reforma de direito material e a processual. O que impactou a Justiça do Trabalho como um todo foi a reforma processual, porque foi criada uma série de requisitos para o ajuizamento de reclamações trabalhistas, tem uma série de ônus que não existiam antes. Isso gerou segurança. Em 2017, nós tivemos 276 mil reclamações; em 2018, 178 mil. Redução de 35,33%. Em compensação, houve aumento de 4,92% nos recursos no segundo grau.
ConJur — Por que esse crescimento no segundo grau?
José da Fonseca Martins — Porque o primeiro grau começou a julgar mais e a remeter os processos para o segundo grau. Não que eles não julgassem. É que, à medida que há uma redução de demandas, o primeiro grau passa a ter mais agilidade. Em 2018, nós recebemos 178 mil novas ações e solucionamos 254 mil. Foram R$ 2,6 bilhões revertidos aos trabalhadores.
ConJur — A imposição de honorários de sucumbência limita o direito de petição dos trabalhadores?
José da Fonseca Martins — Não, porque há um número muito grande de pedidos de gratuidade de justiça deferidos. Se há gratuidade de Justiça, não tem como executar o sucumbente, sendo ele trabalhador, em eventuais ônus decorrentes da perda do processo. E é um risco como sempre existiu na Justiça estadual, na Justiça Federal. E é preciso ter isso.
ConJur — Essa regra mudou alguma coisa?
José da Fonseca Martins — O tipo de reclamação proposta antes da reforma era completamente diferente. Os advogados passaram a ter uma série de cautelas no ajuizamento da reclamação. Parece que eles perguntam aos clientes se elas têm como comprovar o direito que alegam ter. Se não tiverem, eles sugerem não entrar com a ação, porque correm o risco de perder. Agora, isso não impede o acesso à Justiça. Se o direito for bom, se ele tiver como provar o que alega, o risco de perder é muito baixo.
ConJur — A reforma trabalhista foi positiva?
José da Fonseca Martins — Em tudo há coisas boas e ruins. No campo material, a reforma trabalhista tem coisas muito boas. Por exemplo, o fim do imposto sindical. Havia uma estrutura sindical que vivia com a contribuição sindical. E aquilo se elasteceu de tal forma que até as centrais sindicais passaram a se beneficiar dessa receita. Até os próprios sindicatos, aqueles sindicatos mais combativos, de esquerda, que sempre brigaram pelo fim da contribuição sindical, com o fim dela, passaram por sérias dificuldades, porque também dependiam dela.
Mas há pontos negativos. Por exemplo, o fim das homologações das rescisões contratuais. Antigamente, a partir do primeiro ano, era preciso fazer homologações perante a Delegacia Regional do Trabalho. Isso podia ser feito nos sindicatos, o que gerava certa segurança jurídica no ato de homologar. Hoje, não tendo mais essa obrigatoriedade, a possibilidade de fraude em uma rescisão é muito maior. O empresário demite um empregado, o empregado depende daquilo que vai receber na rescisão, e às vezes ele negocia coisas que não poderia negociar.
ConJur — O fim súbito da contribuição sindical não pode asfixiar os sindicatos e enfraquecer a representação dos trabalhadores?
José da Fonseca Martins — A reforma trabalhista pecou em uma omissão: deixar de alterar o sistema da unicidade sindical. Sempre se defendeu o pluralismo sindical. E, estranhamente, esse discurso foi desaparecendo. Perdemos uma excelente oportunidade de implantar o sistema de pluralismo sindical, onde apenas aqueles sindicatos efetivamente combativos angariariam associados. O imposto sindical acabou atingindo os sindicatos de forma geral porque eles só dependiam disso. A grande maioria dos sindicatos vivia da contribuição sindical. Havia até um processo de desestímulo à associação, na medida em que, abrindo o leque de afiliados, poderia potencialmente gerar grupos contrários à administração atual. Então não interessava ter muitos afiliados, eles viviam basicamente da contribuição sindical e acabaram se acostumando com isso. Quando acabou a contribuição, deu no que deu.
ConJur — Alguns tribunais têm acolhido o argumento de que a contribuição sindical é um tributo e, por isso, só poderia ser alterada por lei complementar. Concorda?
José da Fonseca Martins — A contribuição sindical foi criada pela CLT, que não é nem nunca foi lei complementar [é um decreto-lei]. Se ela não foi criada por uma lei complementar, não teria o menor sentido ela só poder ser alterada por lei complementar.
ConJur — O Supremo já liberou a terceirização em recurso com repercussão geral, mas os ministros do TST continuam decidindo de acordo com o próprio entendimento. Isso não pode acontecer com a reforma trabalhista?
José da Fonseca Martins — Quando tomei posse no tribunal, jurei respeitar as leis e a Constituição. E todos os magistrados devem fazer isso. Se há uma lei que disciplina uma matéria de determinada forma, ainda que aquilo venha a contrariar meus princípios, eu tenho que cumprir o que está na norma. Essas decisões alternativas não fazem bem para a sociedade. O jurisdicionado está mais interessado na previsibilidade da Justiça do que em qualquer outra coisa. Não adianta escrever um voto de 30 páginas e o advogado achar o voto excelente, mas o cliente não entender se ganhou ou perdeu. É isso que interessa a ele. Então não adianta ter julgamentos alternativos, tentando reinterpretar a reforma trabalhista se a gente sabe que aquilo vai ser uma coisa que não vai vingar.
ConJur — A reforma deve valer para contratos assinados antes de ela entrar em vigor? Uma comissão do TST entendeu que não.
José da Fonseca Martins — As normas de direito processual são aplicadas de imediato. As normas são respeitadas para aqueles atos praticados. Quanto às normas de direito material, temos que ver se determinada norma contratual afeta a vontade das partes. Se, na época de sua formação, ela não contrariar as leis, tem que ser respeitada. Se houve uma reforma da legislação trabalhista, há de se aplicar a norma em vigor a partir da sua edição.
ConJur — A reforma permite que grávidas e lactantes trabalhem em condições insalubres. Esse trecho já foi questionado no Supremo, mas ainda não houve decisão. O que acha da regra?
José da Fonseca Martins — Do ponto de vista de estudioso do Direito, do ponto de vista do ser humano, um absurdo. Deixar uma mulher grávida, uma mulher lactante trabalhando em um ambiente insalubre é uma desumanidade.
ConJur — O que acha do trabalho intermitente?
José da Fonseca Martins — Sou plenamente favorável. Dou um exemplo. Clubes, de forma geral, têm um restaurante ou contratam uma empresa para explorar a concessão para bares e restaurantes. O que normalmente acontece? Os clubes têm um número específico de funcionários para atender os dias da semana. Nos fins de semana, há uma demanda maior, mas não faz sentido manter um número maior de funcionários para atender à demanda do fim de semana nos dias normais. Então resolve-se um grande problema se for possível ter esses extras contratados regularmente apenas para os fins de semana. Existem determinados setores em que o trabalho intermitente é necessário.
ConJur — O Brasil e, especificamente, o Rio de Janeiro, estão em crise econômica desde 2015. Qual foi o impacto da crise para o TRT-1?
José da Fonseca Martins — A reforma trabalhista gerou uma redução do número de ações, e a contenção orçamentária gerou uma redução da atividade do TRT-1, do ponto de vista de investimentos. O TRT-1 hoje é um retrato da realidade econômica do Brasil. A fase de execução é o grande gargalo da atividade jurisdicional. Daí a importância dos métodos alternativos de solução de conflitos. Porque o trabalhador demanda, leva anos brigando e, quando chega no final, a Justiça não tem estrutura para tocar os processos de execução com a celeridade esperada. E aí há um retardo na prestação jurisdicional. A prestação jurisdicional não significa apenas a distribuição de direito no ato de decidir. Ela também importa necessariamente que se tenha como entregar para o vencedor da ação o bem jurídico que ele persegue. Então, se não se consegue chegar a esse ponto, não se realizou justiça. Nós temos que incentivar os métodos alternativos e temos que criar mecanismos de realização dos atos de execução com a maior celeridade possível. Agora, como é que a gente vai fazer isso? Não sei. Nós precisaríamos de mais mão-de-obra, mais receita e melhor infraestrutura.
ConJur — De tempos em tempos surge a ideia de acabar com a Justiça do Trabalho. A ministra Eliana Calmon já disse que os trabalhadores recebem, por meio de decisões, mais benefícios do que o custo anual da Justiça do Trabalho, então era melhor acabar com ela logo. O presidente Jair Bolsonaro (PSL) também já deixou escapar coisa parecida em entrevista. O que acha da ideia?
José da Fonseca Martins — No meu discurso de posse falei de alguns países onde existe Justiça do Trabalho, como Hong Kong e Israel. E há dois exemplos muito interessantes. No México, a Justiça do Trabalho foi transformada em órgão administrativo. No Chile, a ditadura de Pinochet acabou com a Justiça do Trabalho nos anos 1980 e no renascimento da democracia ela foi restabelecida. No Brasil, curiosamente, a Justiça do Trabalho brasileira sobreviveu aos períodos de chumbo e hoje se discute a extinção dela em pleno regime democrático. É uma contradição. Está errado.
Sérgio Rodas é correspondente da revista Consultor Jurídico no Rio de Janeiro.
Revista Consultor Jurídico
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