Notas & Informações, O Estado de S.Paulo
Este jornal tem sido reiteradamente crítico a algumas condutas de membros do Ministério Público que se tornaram frequentes nos últimos anos: investigações sem objeto preciso que se estendem indefinidamente, uso excessivo e indevido de delações, atuações midiáticas de procuradores e interferências na esfera administrativa. Observa-se amiúde uma compreensão ampliada e distorcida das funções do Ministério Público, como se o papel da instituição fosse refundar a política nacional ou demandasse competências ilimitadas.
Deve-se reconhecer que, não poucas vezes, esses abusos foram tolerados e até mesmo incentivados pelo Judiciário. Por exemplo, o Supremo Tribunal Federal (STF), indo além do que prevê o texto constitucional, entendeu, em 2015, que o Ministério Público tem competência para promover investigação de natureza penal.
O quadro suscita atenção. A Constituição de 1988 previu uma configuração institucional forte e precisa para o Ministério Público, como meio de defesa da ordem jurídica e do regime democrático. No entanto, esse arcabouço constitucional tem sido interpretado como se o Ministério Público tivesse uma autonomia sem limite, sem critério e sem controle – o que é inconstitucional e antirrepublicano.
De forma paradoxal, os problemas da ausência de critério e de controle na atuação do Ministério Público têm sido especialmente notados desde o segundo semestre de 2019, quando Augusto Aras assumiu a chefia da PGR. Sob o pretexto de corrigir uma atuação do Ministério Público fora dos parâmetros institucionais, o procurador-geral da República adotou uma postura oposta, mas também equivocada. Alinhou-se ao Palácio do Planalto, alegando que não cabe ao Ministério Público imiscuir-se em questões políticas.
De fato, não é papel da PGR arbitrar pendências políticas e, muito menos, promover a judicialização de assuntos que, num regime democrático, devem ser decididos pelo Legislativo. No entanto, precisamente porque o Ministério Público não pode fazer política, ele não deve abandonar a defesa da ordem jurídica e do regime democrático para agradar ao presidente da República.
É preciso fazer uma distinção. Uma vez que está muito difundida uma compreensão ampliada e distorcida das funções do Ministério Público – fruto não apenas de uma interpretação extensiva da Constituição de 1988, mas de uma mentalidade tenentista ainda presente em muitos setores da sociedade –, há críticas igualmente ampliadas e distorcidas a respeito da atuação de Augusto Aras à frente da PGR. É impressionante como alguns querem continuar outorgando ao Ministério Público um papel de tutela sobre toda a vida social e política do País, limitando em pleno século 21 o âmbito e a responsabilidade do exercício pessoal da cidadania.
No entanto, por mais que algumas críticas sejam exageradas, salta aos olhos que a PGR de Augusto Aras não tem cumprido o seu papel institucional de defesa da ordem jurídica e do regime democrático. Argumentações supostamente técnicas têm sido invólucro para gravíssimas omissões que, além de deixarem o País refém de agressões à Constituição e a direitos fundamentais, colocam o presidente da República na condição de acima da lei, como se seu agir fosse completamente impune.
Não haveria a escalada de Jair Bolsonaro contra as eleições se a PGR tivesse defendido o regime democrático, acionando no devido tempo o Judiciário. Para piorar, a PGR tem-se colocado em confronto com o trabalho do Supremo. A recente manifestação da vice-procuradora-geral da República, Lindôra Araújo, no inquérito que apura o vazamento de informações sigilosas da Justiça Eleitoral por parte de Jair Bolsonaro é peça de audácia inédita, com o Ministério Público rejeitando a priori provas que possam ser produzidas contra Jair Bolsonaro.
Eis a consequência de pensar que, numa República, pode haver órgãos estatais sem controle. A população se vê desprovida de uma proteção prevista na Constituição, porque a PGR não presta contas. Faz ou deixa de fazer o que bem entende.
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